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Marlon Alberto Weichert e Edmundo Antonio Dias Netto Junior

Superar o passado autoritário

O enfrentamento do legado ditatorial é um imperativo de nosso tempo

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Marlon Alberto Weichert

Procurador regional da República em São Paulo

Edmundo Antonio Dias Netto Junior

Cidadão brasileiro

A campanha #UseAmarelo pela Democracia, desta Folha, não poderia ser mais oportuna, pois convida a olharmos para o passado mal resolvido de um país prenhe de autoritarismo em sua história, moldada pelos traços da conquista, da escravidão e do genocídio indígena. No período mais recente, o fim da ditadura militar encenou o mantra da conciliação, mas sob seu manto ocultou a verdade e permitiu a impunidade dos responsáveis por atrocidades massivas. A anistia que os militares se autoconcederam foi o preço a ser pago para a "volta do irmão do Henfil", na bonita imagem cantada por Aldir Blanc e João Bosco.

Falar em conciliação costuma ser algo bem-visto no Brasil. Afinal, um de nossos grandes historiadores descreveu o brasileiro como o homem cordial. Não no sentido usual do termo, que remete à afabilidade dos gestos ou à educação empática e agradável. O homem cordial é o velho patrimonialista, ou seja, aquele que oferece postos para os seus, ou quem, exercendo posição de mando, afirma ser a própria Constituição. "Para o funcionário 'patrimonial'", como ensinou Sérgio Buarque de Holanda, "a própria gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse particular". Nada mais natural, portanto, que a sugestão de um filho para uma embaixada.

"Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez", como observou o notável historiador. Só mesmo em meio a essa cordialidade apenas aparente se compreende as eleições de 2018, pois o exato oposto da cordialidade (como a entendemos no senso comum) esteve presente em falas abertas de enaltecimento à ditadura militar e à tortura, contrárias à diversidade e ao pluralismo que enriquecem nosso país. É também o que revela a investida do presidente da República contra jornalista de O Globo que exercia suas funções, no último dia 23, ao expressar mais uma vez agressividade incompatível com o decoro do cargo.

No país do esquecimento, não foram poucos os esforços para desvendar a verdade, respeitar a memória, reparar danos e promover a justiça sobre o que se passou na ditadura. Apesar disso, muito resta por fazer, a começar pelo julgamento dos autores de crimes contra a humanidade. Passado este domingo (30), Dia Internacional das Vítimas de Desaparecimentos Forçados, devemos nos perguntar por que o Brasil insiste no perdão a crimes imperdoáveis e em ocultar fatos e corpos.

Debaixo do tapete, há um fio de novelo que permeia nossa história. Ele se desnovela, atualmente, nas milhares de mortes evitáveis decorrentes da pandemia de Covid-19. A política de desconsideração do direito à saúde e de relativização da vida está conectada pela mesma linha que une períodos distintos entre o passado e o presente.

A falta de enfrentamento do legado ditatorial é elemento-chave nesse processo histórico. Superar o passado autoritário e construir um futuro de vivência plena dos valores da democracia e dos direitos humanos exigem revelação da verdade, responsabilização, reparação e mecanismos de não repetição. Deixar para trás o país de uma cordialidade patrimonialista e da falsa conciliação pressupõe enfrentar esses desafios. A postergação desse dever nos conduziu à distopia atual. Superá-la é imperativo de nosso tempo, para virar uma "página infeliz da nossa história", como sugere a letra de Chico Buarque.

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