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Um basta à brutalidade policial

Política de segurança deve buscar prevenção e inteligência, e não produtividade

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Decidir arbitrariamente sobre a vida de cidadãos e cidadãs não é apenas inconcebível, mas fere de morte o Estado democrático de Direito. Este seria um truísmo em qualquer democracia se a polícia não tivesse sido responsável por uma em cada quatro mortes no ano passado, só em São Paulo. Foram ao todo 867 vidas, mais de duas por dia.

O número deveria ter se transformado em marco da falência do atual modelo de segurança pública. Um modelo seletivo, que concentra ações e abordagens policiais em territórios de periferia, contra jovens negros, e permite que se atire primeiro e pergunte depois. O fracasso teve o sinal trocado pela retórica torpe do populismo vitorioso nas eleições 2018.

Assim, a marca inédita da letalidade policial não redundou na imediata reorientação do uso da força pelas autoridades de segurança, de modo a fazer cessar a matança. Pelo contrário, a sede de sangue aumentou e, somente no primeiro semestre de 2020, foram 514 mortes pelas mãos de policiais, maior número da série histórica iniciada em 2001.

A vida de Rogério Ferreira da Silva Júnior, 19, assassinado ao sair para comemorar seu aniversário com amigos, poderia ter sido poupada se medidas para conter a violência policial tivessem sido adotadas. O preço é alto, incalculável: cinco centenas de famílias destroçadas só neste ano. E um dos francos estímulos a esses dois vergonhosos recordes consecutivos é a absoluta falta de controle sobre o uso da força pelas polícias e a não apuração das circunstâncias das mortes.

À polícia cabe trabalhar para entregar segurança pública a todos. Sabemos quem não entra nessa lista, e não é por mérito ou demérito, é por conta de etnia/raça, CEP, faixa etária ou do modo como se veste. Não há autorização legal para que agentes do Estado pratiquem execuções sumárias, como registram inúmeros flagrantes de celulares e câmeras de vigilância —ou para que se dispensem os órgãos competentes de apurar as circunstâncias das mortes a partir de uma concepção generalizada de que os policiais agem apenas dentro dos estreitos limites da lei.

O Supremo Tribunal Federal recentemente referendou a liminar concedida pelo ministro Edson Fachin que suspende as operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro durante a pandemia. Na liminar, o relator ressaltou que o uso da força letal não pode se confundir com o objetivo de retirar a vida de alguém. A decisão destaca que os critérios que autorizam o uso legítimo de força armada por partes dos agentes de Estado devem ser rígidos e não podem ser relativizados, tampouco excepcionados.

Como as autoridades têm atropelado tais princípios, 12 organizações da sociedade civil e movimentos sociais reforçaram uma ação civil pública proposta pelo Ministério Público contra o estado de São Paulo, buscando refrear a letalidade e violência policial e exigir o fim das execuções sumárias.

As entidades, além de reafirmarem a importância de mecanismos independentes e imparciais de controle da atividade policial e investigações de todas as mortes, demonstram a necessidade de medidas abrangentes sobre as polícias, como o monitoramento do deslocamento e dos registros de áudio de viaturas, câmeras corporais nas fardas e dados detalhando as abordagens policiais (perfil dos abordados, local, hora e motivação, por exemplo) disponíveis para que se possa averiguar e desenhar modelos de prevenção à discriminação racial na segurança pública.

A ação cuida de corrigir uma inversão de prioridade na política de segurança, guiada hoje pela produtividade policial, que, por sua vez, é aferida pelo número de prisões e apreensões de drogas, em detrimento de ações de prevenção, inteligência e investigação. Dados da Rede de Observatórios da Segurança, que tem mais de 7.000 registros baseados nos relatos da imprensa, das mídias sociais e de outros meios, revelam que expressões como “prisão”, “suspeito”, “drogas”, “operação” e “tráfico” aparecem na ordem dos milhares, com 3.926, 2.097, 1.960, 1.472 e 1.166 ocorrências, respectivamente, enquanto palavras como “investigação” e “inteligência” aparecem 373 e 25 vezes, respectivamente.

Essas metas buscam, em suma, prender em flagrante, o que faz com que a repressão recaia desproporcionalmente em jovens negros do sexo masculino, perfil que não por acaso se repete entre os alvos preferenciais de revistas e prisões ilegais, agressões físicas e verbais, flagrantes forjados, abordagens injustificadas, espancamentos e morte. Essa realidade tem produzido violências de todas as ordens, ceifando vidas e interrompendo sonhos desde a infância. Demandamos, como sociedade, um basta.

Débora Maria da Silva
Mães de Maio

Douglas Belchior
Uneafro Brasil

Felipe Andrés Calderón Roa
Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo (Cedhep)

Gabriel Sampaio
Conectas Direitos Humanos

Jacqueline Sinhoretto
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (Ibccrim)

Juca Kfouri
Associação Brasileira de Imprensa (ABI)

Maria Anna Stockler
342 Artes

Maria Clara D'Ávila
Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas

Marina Dias
Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD)

Marisa Feffermann
Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio

Rogério Sottili
Instituto Vladimir Herzog

Thaís Nascimento Dantas
Instituto Alana

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