Descrição de chapéu
Paulo Betti

Uma metáfora do Brasil

O tempo faz tudo parecer engraçado, até a tragédia

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Paulo Betti

Ator e produtor

Outro dia me lembrei da estreia de "Júlio César", de Shakespeare, no Teatro Municipal de São Paulo. O ano era 1965 (ou 1966), logo depois do golpe militar. A empresária teatral Ruth Escobar resolveu encenar a tradução de Carlos Lacerda, na época governador do estado da Guanabara.

Era odiado por muitos, principalmente pelos artistas da chamada "classe teatral", que se opunham ao regime recém-instalado. O "Corvo" —como chamavam Lacerda—, um dos principais conspiradores do regime militar, precisava de uma imagem mais intelectual, humana e de uma ponte com a cultura, que lhe desenhasse um perfil favorável.

O ator Paulo Betti
O ator Paulo Betti - Mathilde Missioneiro - 13.ago.19/Folhapress

Ruth conseguiu muito dinheiro oficial para encenar a peça. Contratou um elenco excepcional, regiamente pago. O cenógrafo era Vladimir Carvalho, que construiu uma escadaria. Os figurinos eram de Maria Bonomi, expressiva artista plástica, mas com pouca experiência teatral. Antunes Filho, talvez numa espécie de autopunição por estar fazendo aquela produção politicamente incorreta, empregou uma estratégia suicida.

Ensaiou os atores separadamente. O elenco completo só se encontrou na véspera da estreia, no ensaio geral. Alguns atores argumentaram que não era possível estrear, mas foram demovidos pela produção de que a divulgação já estava feita.

Argumentando com a tradição de que o mau ensaio geral prevê uma grande estreia, baseado na teoria de "o risco da catástrofe iminente", o diretor conseguiu convencer o elenco.

Na plateia, os convidados se dividiam entre os patrocinadores, os políticos, os generais do 1º e do 2º Exército e o pessoal da classe artística que torcia contra a peça. Foi um dos maiores fracassos do teatro brasileiro.

No começo, Juca de Oliveira, aparecendo no alto da escada, disse: "Que se abram de par em par os portais de Ro...", quando foi completar "Roma", a alça se rompeu e o escudo caiu, para estrondo debochado da plateia.

Depois entra em cena Raul Cortez, no papel de Cássio, vestindo uma saia curta, plissada. Dos camarotes, o anarquista diretor italiano Alberto D'Aversa gritou: "Maria Esther Bueno", referindo-se à nossa mais famosa tenista. A plateia veio abaixo.

Morto, Júlio César entra em cena numa espécie de carroça romanizada. Deitado de bruços, o saudoso ator Sadi Cabral entrava nu, apenas coberto por uma manta. A carroça posicionou-se de tal modo que o ator, constrangido, percebeu que estava descoberto, com a bunda virada para a plateia.

Alberto D'Aversa bradou: "Popô arte!". Outro gargalheiro.

No intervalo, as autoridades foram embora e o espetáculo ficou literalmente entregue à classe teatral.

Os erros e as descontinuidades se sucediam. No fundo, ouvia-se a voz do diretor: "Segue!", gritava Antunes.

Sadi aparece no alto, numa rampa, agora como o fantasma de Júlio César: "Cuidado com os idos de março", diz, e vai recuando. A rampa se acaba, e Sadi não percebe. Agarra-se ao pano e o último "marçoooo..." é seguido de um estrondo. No fundo, a voz do diretor: "Segue!"

Ouvem-se sirenes, ambulância. O espetáculo continua e, quando o pano fecha, a plateia aplaude de pé, rindo do fracasso desejado. O elenco não volta para agradecer.

Sadi sofre uma fratura e no dia seguinte teve que ser substituído. O ator que entra leu o texto num pergaminho, porque não deu tempo de decorar. Um pouco antes do espetáculo, descobre que não poderia ler sem os óculos. Naquela segunda noite, Júlio César tinha um par de lentes grossas. O público foi abandonando a peça, que saiu de cartaz.

O tempo faz tudo parecer engraçado. Até a tragédia.

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