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Heloisa Estellita e Orlandino Gleizer

A investigação penal de insuspeitos

STJ fere direitos ao exigir coleta massiva de dados

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Heloisa Estellita

Professora de direito penal na FGV Direito SP (Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas)

Orlandino Gleizer

Doutorando na Universidade Humboldt de Berlim e assistente científico na Universidade Julius-Maximilians de Würzburg (Alemanha)

O Superior Tribunal de Justiça acabou de obrigar uma empresa de tecnologia a fornecer dados privados de, potencialmente, milhões de pessoas a órgãos de investigação. Os dados seriam necessários para descobrir mandantes de um odioso homicídio. Os problemas da decisão não são a gravidade do crime e a importância do êxito da investigação, mas a falta de autorização democrática e o custo desproporcional da medida para essa finalidade.

Nós, titulares dos direitos fundamentais à privacidade e à proteção de dados, ainda não conferimos essa autorização ao Poder Judiciário. Numa democracia submetida à reserva de lei, só nossos representantes parlamentares podem autorizar essas intervenções. Executivo e Judiciário só devem atuar com fundamento em lei, que é a permissão dada por cada um de nós. Sem ela, ninguém é obrigado a tolerar intervenções em suas esferas constitucionalmente protegidas. O fato de que direitos fundamentais, em sua maioria (excepcionada, por exemplo, a proibição de tortura), não são absolutos em nada altera a exigência de que só sofram intervenções autorizadas por norma determinada e proporcional.

Mas não existe norma válida autorizando o que pretendem as autoridades de investigação. O artigo 22 do Marco Civil da Internet não atende a algumas exigências do princípio da reserva legal: ele não autoriza de forma clara e precisa as intervenções pretendidas e ainda emprega linguagem que permite, como se vê no caso julgado, a coleta massiva de dados de insuspeitos. Ademais, não estão previstos, por exemplo, para quais crimes a medida está autorizada, o seu caráter subsidiário, o dever de notificação dos afetados, a obrigação de eliminação dos dados obtidos e os propósitos para os quais podem ser utilizados. Por fim, alguns dados de conexão podem permitir a concretização de um específico processo de telecomunicação; isso representaria uma intervenção ainda mais severa, cujos pressupostos deveriam ser ainda mais exigentes. Não bastasse a inexistência de autorização, há proibição expressa de pedidos coletivos genéricos ou inespecíficos (decreto nº 8.771/2016).

Com a medida, a privacidade de milhões de pessoas sabidamente insuspeitas está ameaçada. Isso porque o número de pessoas afetadas, próximo dos milhões, não corresponde ao número de possíveis mandantes do crime, estes sim suspeitos, que provavelmente não ultrapassa uma dezena. Assim, milhões de insuspeitos, dentre eles crianças, terão revelados dados sobre suas localizações, deslocamentos e pesquisas online. Ainda que por um breve hiato, serão todos objeto de investigação. Isso configura a danosa prática de "fishing expedition", que, em bom português, significa investigar jogando rede de arrastão, sem alvos definidos.

Sugerir que os dados em questão não permitiriam a individualização dos usuários atingidos causa perplexidade: fosse assim, ou o pedido não faria o menor sentido, pois sua finalidade é encontrar os mandantes do crime, ou seria uma drástica intervenção na vida de inocentes a troco de nada.

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