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Magdalena Sepúlveda

As mulheres não devem pagar a conta

Mais prejudicadas na pandemia, elas aguardam por políticas redistributivas

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Magdalena Sepúlveda

Diretora-executiva da Global Initiative for Economic, Social and Cultural Rights; ex-relatora da ONU sobre Pobreza Extrema e Direitos Humanos (2008-14)

Nos EUA, as pessoas começaram a chamar o fenômeno de "shecession", pois o veem como uma recessão que prejudica muito mais as mulheres. Já em abril, elas foram responsáveis por 55% dos empregos perdidos, apesar de representarem menos da metade da força de trabalho.

Não é uma especificidade estadunidense. O colapso das atividades nos setores que entram em contato com as pessoas —cuidado de crianças, turismo, varejo etc.— explica essa discrepância. Os serviços são uma profissão feminina, representando 58,6% das mulheres empregadas, contra 45,4% dos homens. Elas também estão na linha de frente no combate ao novo coronavírus. Globalmente, 88% dos trabalhadores de cuidados pessoais e 69% dos profissionais de saúde são mulheres.

Seja em hospitais ou supermercados, esses empregos também são os menos remunerados. No setor informal, é ainda pior. Vejamos os trabalhadores domésticos, que na América Latina são 18 milhões de pessoas (6 milhões no Brasil), sendo 93% mulheres. Sete em cada dez ficaram desempregadas ou perderam horas de trabalho devido às quarentenas.

A pandemia também tornou evidente a organização social injusta dos sistemas de assistência. Mesmo antes da crise, as mulheres e meninas já gastavam 12,5 bilhões de horas por dia cuidando de outros gratuitamente. Esse tempo disparou com o confinamento de pessoas idosas, o fechamento de escolas e a necessidade de cuidar dos doentes. Muitas mães estão desistindo de seus empregos, especialmente aqueles que não podem ser realizados remotamente. Ao mesmo tempo, a violência doméstica está aumentando, com as mulheres muitas vezes presas com seus agressores.

Então, como evitar esse retrocesso? Com políticas públicas mais redistributivas: por meio de acesso universal a saneamento, saúde, água, e educação; e lares para idosos. Evidentemente, isso exige muitos recursos. Não é aceitável que cause uma explosão de dívidas ou, pior ainda, mais austeridade. Pelo contrário, este é o momento de introduzir uma verdadeira política contra os campeões da evasão fiscal, como a Comissão Independente para a Reforma da Tributação Internacional das Empresas (ICRICT), da qual sou membro, acaba de apontar em um relatório recente.

Uma das prioridades deve ser exigir que os gigantes digitais, que têm estado na vanguarda da evasão fiscal, paguem sua parte justa dos impostos. Ironicamente, eles têm sido os grandes vencedores da pandemia: as fortunas de Jeff Bezos (dono da Amazon) e Mark Zuckerberg (Facebook), por exemplo, cresceram bilhões de dólares nestes meses do confinamento. Os países deveriam seguir os passos de Índia, Reino Unido e França na introdução de impostos progressivos sobre serviços digitais.

Diante das multinacionais que pressionam por cortes fiscais, supostamente para assegurar a "reconstrução" da economia, os governos têm que resistir. Estudos mostram que fatores como qualidade da infraestrutura, força de trabalho saudável e qualificada e estabilidade política importam muito mais quando se trata de atrair investimentos.

Finalmente, é hora de abordar a questão da transparência. Isso permitiria aos governos introduzir uma tributação efetiva dos mais ricos, incluindo a riqueza offshore. Quanto às multinacionais, não é aceitável que elas possam obter auxílios estatais para lidar com o impacto econômico da pandemia, enquanto continuam a não pagar impostos sobre os lucros que obtêm. Como Gabriel Zucman —também membro do ICRICT— demonstrou, mais de 40% dos lucros internacionais das multinacionais são declarados em paraísos fiscais, privando os Estados de recursos preciosos.

Um dos pontos positivos desta terrível pandemia tem sido o fato de ter lembrado a todos que os serviços públicos são preciosos. Eles não apenas salvam vidas, mas também nos mantêm saudáveis e garantem o futuro de nossos filhos.

Chegou a hora de fornecer aos Estados recursos suficientes para reconstruir sociedades e economias mais prósperas e resistentes, mas também mais equitativas.

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