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Maria Paula Bertran

Boca, consumo ou empresas de recuperação de crédito?

Auxílio de R$ 600 não deveria ser utilizado para o pagamento de dívidas

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Maria Paula Bertran

Professora de direito econômico da Faculdade de Direito da USP de Ribeirão Preto, professora visitante na Stanford Law School (2020) e titular da Cátedra Fulbright em Democracia e Desenvolvimento Humano (2018)

Reportagem publica no jornal Valor em 26 de agosto de 2020 descreve o sucesso das empresas de cobrança e recuperação de dívidas em um momento de inédita crise econômica e desemprego. O sucesso dessas empresas é creditado a dois fatores: diminuição do consumo das famílias (com redução de gastos com transporte, alimentação em restaurantes e viagens, por exemplo) e os R$ 600 pagos como auxílio pelo governo federal.

O sucesso das empresas de cobrança e recuperação de dívidas baseado no auxílio destinado à população durante a pandemia revela pelo menos duas graves disfunções.

A primeira: as pessoas estão deixando de consumir hoje para pagar dívidas que representam consumo passado. A economia precisa que os empregos gerados pelo fluxo de consumo sejam mantidos agora. A sociedade precisa que a subsistência seja garantida hoje. O pagamento de dívidas passadas não fará com que o trabalhador da fábrica de fogões e geladeiras mantenha seu emprego neste momento. O pagamento de dívidas passadas retira, hoje, da mesa do beneficiário do auxílio. O pagamento de dívidas passadas esvazia, agora, sua prateleira de remédios. Impede o pagamento da conta de luz neste mês. Dividir o auxílio com o pagamento de dívidas passadas esvazia o tanque de expectativas da população e a imobiliza para tentativas de empreendedorismo.

A atividade das empresas de recuperação de crédito geralmente envolve dívidas contraídas sem garantias. A retomada das garantias (casas e automóveis, por exemplo) ocorre muito antes da atuação das empresas de recuperação de crédito.

Essas empresas têm atuação central sobre dívidas de cartões de crédito, empréstimo pessoal (sem a garantia do consignado, que autoriza o desconto da parcela da dívida diretamente do salário ou benefício previdenciário do devedor), e, em menor proporção, de vendas parceladas por varejistas.

Grandes grupos econômicos precificam as dívidas de recuperação improvável e as repassam, com significativos descontos, a empresas especializadas. Isso retira dos bancos problemas de balanço, mas não necessariamente reduz sua lucratividade, pois a inadimplência é um fenômeno previsível e controlado.

Fora das regras de governança dos grandes grupos financeiros, a abordagem insistente e invasiva é a prática corrente. A recuperação do crédito envolve uma postura muito ativa do cobrador para convencer o devedor a pagar o que já está vencido, provavelmente há muito tempo. A inteligência das empresas de recuperação de crédito normalmente envolve a intensificação das abordagens de cobrança nos meses que antecedem a prescrição das dívidas. A aceitação de um acordo gera um fenômeno chamado novação contratual, disposição do Código Civil que renova os prazos de prescrição a partir da data inicial e autorizam as abordagens de cobrança por novo período prescricional.

A oferta do auxílio emergencial à população brasileira altera essa tradicional abordagem das empresas de cobrança. A regra agora não é mais cobrar à iminência da prescrição, mas cobrar de todos, tanto quanto os robôs que ligam em nossos telefones em horas impróprias consigam, ou tanto quanto os anúncios de nossas redes sociais permitam.

Agora, em razão da ampla distribuição do auxílio emergencial em razão da pandemia, as chances de encontrar um antigo devedor com algum valor a oferecer é mais alta do que nunca. Vale lembrar que as dívidas cobradas agora talvez tenham sido contraídas anos atrás, no momento em que o Brasil tinha pleno emprego e vivia efetivo aumentos reais de salários. Vivíamos, naquele momento, o que a economista carioca Lena Lavinas chama de “o paradoxo brasileiro”: quando menos precisava de dinheiro, a população brasileira tomou emprestado, a altos juros, mais do que nunca. Essa constatação nos remete à economia comportamental no setor de finanças e às ferramentas de convencimento para aquisição (ou quitação) de crédito.

A segunda disfunção envolve, assim, os motivos pelos quais um volume considerável de pessoas concorda em deixar de colocar mais comida na mesa para pagar uma dívida antiga, na maior parte das vezes contraída sem garantia e, por isso, incapaz de representar qualquer risco a seu patrimônio ou piorar sua qualidade de vida durante a pandemia. Por que, afinal, essas pessoas aceitam abrir mão de parte de seus R$ 600 justamente agora?

A resposta aponta para o discurso que reduz os conceitos morais de bom e mau aos conceitos de adimplente ou inadimplente. Essa associação aparece na construção ideológica de que o devedor deve ter seu nome limpo, de que seu nome e sua honra são seu maior patrimônio. Nesse discurso, sobrelevam-se as ideias de que o crédito deve ser tomado de maneira consciente, atribuindo ao devedor a responsabilidade pelos créditos que toma, na melhor tradição voluntarista e liberal.

Esse discurso fala que o povo precisa de mais educação financeira. Esse discurso omite a regular manutenção de crédito para inadimplentes, um grande nicho de mercado. Esse discurso omite a lógica de que os bancos ganham muito mais com a inadimplência controlada do que com o pagamento pontual das dívidas. (Um exemplo clássico é o setor de cartões de crédito, em que o pagamento de valores abaixo do total da fatura, e o consequente uso do chamado crédito rotativo, são muito mais lucrativos do que o pagamento pontual e integral da conta do cartão.)

Esse discurso também omite o contexto macroeconômico e a piora do desempenho do Brasil no cenário global. O discurso que convence a pagar não fala do desemprego estrutural e da proletarização do emprego. Tudo leva a fazer o brasileiro médio acreditar que ele deve porque é desorganizado, imprudente e impulsivo. E deve se esforçar para recuperar suas supostas nobreza e honradez, pagando com o que tiver disponível a seu alcance.

O sucesso das empresas de recuperação do crédito neste momento representa uma tragédia para a tentativa de minimizar o sofrimento das pessoas e os problemas econômicos da pandemia. Ele revela a priorização de Wall Street, em detrimento da Main Street, na clássica expressão de Rana Forrohar no livro "Makers and Takers: The Rise of Finance and the Fall of Business".

O sucesso das empresas de recuperação representa uma subversão de necessidades. As dívidas são obrigações legítimas, garantidas pelo sistema jurídico. Mas não devem ser a prioridade agora. A prioridade deve ser a de evitar a deterioração da economia e a desnutrição da qualidade de vida da população. Amanhã, quando tudo passar, o constrangimento das cobranças insistentes pode e deve voltar. Agora, quando as pessoas têm apenas vulnerabilidade psicológica e R$ 600, poderia ser confundido com covardia.

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