No artigo "Definição deve ter fundamentação científica", publicado nesta Folha no dia 10 de outubro, o presidente-executivo da Abimapi (Associação Brasileira das Indústrias de Biscoitos, Massas Alimentícias e Pães & Bolos Industrializados), Claudio Zanão, sugere que o conceito de "alimentos ultraprocessados" não tem fundamentação científica. Reduz o termo a alimentos que teriam cinco ou mais ingredientes e, ainda, confunde-o com outro conceito, o de alimento “industrializado”.
Há cerca de dez anos, o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP) criou a classificação Nova, que separa os alimentos em quatro grupos de acordo com a extensão e o propósito do processamento industrial a que foram submetidos —e aposenta a antiga pirâmide alimentar, que classificava os alimentos tão somente em função do seu conteúdo de nutrientes.
Os quatro grupos da Nova são: alimentos "in natura" ou minimamente processados (como vegetais, carne, leite e ovos), ingredientes culinários processados (como gorduras, açúcar e sal), alimentos processados (como pães e queijos) e alimentos ultraprocessados (como "batata” chips, barra de “cereal”, “cereais” matinais, refrigerantes e bebidas à base de “fruta”, entre muitos outros produtos).
A classificação Nova —e o conceito de alimento ultraprocessado— não é um devaneio do Nupens/USP.
Ela é a base do Guia Alimentar para a População Brasileira, lançado em 2014 pelo Ministério da Saúde e criado em parceria com a Organização Pan-Americana da Saúde. Guia este que inspirou uma série de outras diretrizes alimentares de países como Canadá, França e, mais recentemente, Israel, além de diversas nações latino-americanas. A Nova também é base de pesquisas científicas sobre a relação entre alimentação e saúde realizadas nas mais renomadas universidades de todo o mundo.
Os cientistas que fazem uso da classificação identificam alimentos ultraprocessados sem dificuldades, observando sua definição: formulações de substâncias obtidas (processadas) de alimentos, muitas de uso exclusivamente industrial, mais corantes, aromatizantes, emulsificantes e outros aditivos usados com propósitos cosméticos.
O conceito é reforçado no Guia: "Um número elevado de ingredientes (frequentemente cinco ou mais) e, sobretudo, a presença de ingredientes com nomes pouco familiares e não usados em preparações culinárias (gordura vegetal hidrogenada, óleos interesterificados, xarope de frutose, isolados proteicos, agentes de massa, espessantes, emulsificantes, corantes, aromatizantes, realçadores de sabor e vários outros tipos de aditivos) indicam que o produto pertence à categoria de alimentos ultraprocessados".
Os pesquisadores e os profissionais de saúde que utilizam a Nova têm dois pontos em comum: a saúde humana como centro de suas preocupações, e a ausência de conflito de interesses que tornem seus posicionamentos enviesados.
Não surpreende a fala equivocada de Claudio Zanão sobre alimentos ultraprocessados, já que ele preside uma associação de indústrias que lucram com a produção desses alimentos. Trata-se de um caso claro de conflito de interesses.
O mesmo equívoco e o mesmo conflito de interesses são encontrados na manifestação da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia) apoiando um ofício do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento que solicitava ao Ministério da Saúde a revisão do Guia Alimentar para a População Brasileira, alegando ser este "um dos piores do planeta".
Em sua manifestação, a Abia citou um estudo que teria demonstrado que o guia brasileiro era um dos piores do mundo. Menos de 48 horas após a divulgação do manifesto, os autores do estudo —pesquisadores de Harvard e Oxford— denunciaram a “má interpretação grosseira” e o “uso indevido do estudo” pela Abia.
Note-se que uma alimentação adequada e saudável não pode prescindir da indústria e do processamento de alimentos. Segundo o Guia Alimentar, alimentos minimamente processados junto aos alimentos "in natura" são a base da alimentação saudável. Ingredientes culinários processados, em pequenas quantidades, são necessários para transformar alimentos "in natura" ou minimamente processados em receitas deliciosas. Alimentos processados, igualmente em pequenas quantidades, complementam e tornam ainda mais prazerosas as refeições, sem comprometer sua qualidade nutricional.
O Guia recomenda evitar apenas o consumo de alimentos ultraprocessados. E o faz com base nas numerosas evidências científicas que comprovam os males à saúde causados por esses produtos, incluindo o aumento substancial do risco de obesidade, diabetes, hipertensão, doenças cardiovasculares, depressão e várias outras doenças crônicas, além do encurtamento da expectativa de vida.
Essas evidências, negadas por Claudio Zanão e pela Abia, foram objeto de seis estudos de revisão sistemática realizados por pesquisadores de vários centros acadêmicos do mundo e publicados, este ano, por prestigiosas revistas científicas.
Em um momento em que é inegável a existência de uma epidemia de doenças crônicas, que ganharam ainda mais evidência por agravar os efeitos da Covid-19 na saúde humana, é absurda e anacrônica a manutenção do negacionismo em prol dos lucros da indústria.
TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.