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José Ruy Lozano

Voltar à sala de aula para reinventá-la

Escola já não pode mais se estruturar como mera transmissora de conteúdos

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José Ruy Lozano

Sociólogo e autor de livros didáticos, é membro da Comunidade Reinventando a Educação (coreduc.org)

“Uma escola é uma fábrica é um poema é uma prisão é academia é tédio, com flashes de pânico.” A frase do poeta russo Joseph Brodsky, retirada de um de seus ensaios autobiográficos, diz muito sobre as imagens associadas à instituição escolar ao longo do tempo —de centro de difusão de conhecimento e formação humana até estabelecimento repressivo normatizador de condutas. Nas últimas semanas, porém, a expressão “flashes de pânico” pode defini-la melhor, diante da iminente autorização para o retorno às aulas presenciais em meio à pandemia de Covid-19.

O receio do contágio é plenamente justificado diante de números que não cedem, ou cedem lentamente. Mas o retorno às atividades presenciais nas escolas pode desencadear outros medos, frustrações ou, pelo menos, necessidades de adaptação —e não apenas no que se refere a normas de higiene e distanciamento.

Em pouquíssimo tempo, e de forma quase heroica, educadores do mundo todo fizeram a transferência de sua atuação presencial para o espaço virtual, com maiores ou menores recursos e êxitos. No ambiente on-line, no entanto, vemos com frequência a aula como commodity: mera transmissão de informações. O professor fala, o aluno escuta. De aulas assim, o YouTube está cheio, sobre todos os tópicos tradicionais da educação básica. Por que investir tempo e disposição para assistir ao professor, se posso acessar os mesmos conteúdos com recursos visuais mais interessantes e “professores” por vezes mais divertidos?

A adaptação forçada aos meios virtuais e a constatação da reprodução de práticas analógicas no universo digital devem levar os educadores a uma importante reflexão: como aproveitar ao máximo a permanência do aluno em sala de aula? A presença do estudante diante do professor, de cuja falta tanto nos ressentimos, é fundamental para quê? Se conteúdos e treinamentos podem ser disponibilizados em vídeos, o que fazer quando estivermos de volta às escolas?

Se há alguma herança positiva do período de pandemia, em meio a um cenário tão desolador, é a constatação de que a escola já não pode mais se estruturar como transmissora de conteúdos. Além de seu fundamental papel na socialização e na aprendizagem de tudo o que ela envolve (cooperação, solidariedade, respeito ao outro e ao espaço público), sua função contemporânea é desenvolver a reflexão —crítica, problematizadora, cidadã— sobre conceitos e informações há muito instantaneamente acessíveis na sociedade em rede.

O trabalho começa com a intensa e necessária curadoria de fontes de informação, cada vez mais urgente nesses tempos de terraplanismo e fake news, negacionismo e revisionismo histórico. A inserção inteligente na cultura digital é imprescindível para que o debate sobre pontos de vista divergentes seja feito em bases sólidas.

Também aprendemos nos tempos de pandemia que as aulas on-line mais bem-sucedidas foram aquelas que solicitaram ao aluno a observação, a pesquisa, a experiência e a aplicação prática de conceitos, realizadas previamente, cujos resultados, satisfatórios ou não, eram colocados em discussão durante a aula.

Foi possível igualmente perceber que o aluno poderia ler um texto ou assistir a uma vídeo-aula antes da interação ao vivo com o professor, chegando a ela já com as informações necessárias para pensar sobre o assunto estudado, responder a perguntas, propor questionamentos e reflexões a respeito do que viu ou leu.

Inverter, enfim, a ordem dos fatores. Deixar de priorizar a transferência de dados —commodity— para agregar valor à indispensável reunião presencial denominada aula. Aperfeiçoar a proximidade com o que aprendemos na distância. Assim poderemos evitar os “flashes de pânico” do retorno a um normal escolar que há muito já deveria ter sido superado.

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