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João Santana

A montanha pariu um rato

Projeto de reforma administrativa patina ao manter regime estatutário

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João Santana

Advogado e consultor, foi secretário da Administração Federal (mar.1990-mai.1991) e ministro da Infraestrutura (mai.1991-mai.1992; governo Collor); é autor de 'O Estado a que Chegamos' (editora Alta Cult)

O título deste artigo traduz a impressão que ficamos com o projeto de reforma administrativa enviado pelo Executivo ao Congresso.

O Brasil tem uma tradição de não enfrentar a questão da administração pública em períodos democráticos. As duas maiores reformas do serviço público se deram em períodos de exceção. Foi assim com Getúlio Vargas e o Dasp (Departamento Administrativo do Serviço Público), em 1938, e com Castelo Branco e o decreto-lei 200, de 1967.

Duas ações que, a seu tempo, trouxeram organização e conceitos modernos ao serviço público, em relação a servidores, e também à burocracia.

Os atuais reformadores voltam ao passado. Basicamente se atêm à mudança do regime jurídico único, imposto pela Constituição de 1988, e criam outros regimes de convivência, como no decreto-lei 200.

Podemos vesti-lo com outras fantasias, porém continuaremos com o regime estatutário e, pior, convivendo com gente contratada por tempo determinado. No tempo, teremos batalhas legais e a concessão pretoriana de benefícios a servidores públicos. Também não sabemos quais serão as carreiras “típicas de Estado”, definição bolorenta onde, dependendo do freguês, cabe qualquer um.

Não se tocou na estabilidade, e ainda passaram olimpicamente pelo parágrafo 11 do artigo 37 da Constituição, a porta para o desrespeito ao teto salarial do servidor público.

Os constituintes de 1988, ao definirem que os servidores públicos deveriam ter um único regime jurídico como vinculo de trabalho, não estavam de todo errados. O equívoco foi delimitar a estabilidade como tábula rasa e adquirida pelo tempo.

Penitencio-me. Como responsável no governo Collor pela reforma administrativa, tentei retirar o projeto de lei que estava na Câmara dos Deputados, enviado por José Sarney, e fui derrotado. O Congresso, apesar da prerrogativa do Executivo, recusou-se e aprovou um saco de prebendas que foi amaciado com vetos e, mais tarde, com a emenda 19 de Fernando Henrique Cardoso.

Todo servidor público deveria obedecer a um único regime jurídico de contratação, e ao mesmo regime previdenciário, não obstando que cada esfera pública possua legislação específica para reger as relações funcionais com seus servidores e garantir a eficiência do serviço público.

Mas e a estabilidade? Como garantir a independência do exercício do múnus público sem ela?

Esse instituto, mal compreendido e usado sem muito critério, foi positivado pela primeira vez em nosso sistema jurídico pelo presidente Venceslau Brás em 1915. Ele aproveitou a lei 2.924, que tratava de questões orçamentárias e, no seu artigo 125, enfiou um jabuti, dando estabilidade a todos os funcionários que tivessem ao menos dez anos de serviço e nada que os desabonassem.

Depois, a Constituição de 1934 o inaugurou como norma constitucional —e todas as outras que a seguiram também, apenas dando cada vez mais corpo e significado à estabilidade para o servidor público, e variando quanto ao período aquisitivo.

A estabilidade seria o único meio, ou o melhor, para proteger o servidor público encarregado de questões como a de distribuir justiça ou cobrar tributos?

Os EUA, ainda no século 19, aprovaram o “Civil Service ​Act”, de 1883, reformado por Jimmy Carter em 1978, que não fala em estabilidade como “direito” do servidor uma única vez, mas define o concurso público para entrada e o sistema de meritocracia para promoções.

Modernamente, mesmo para as chamadas “carreiras de Estado”, o que se impõe é a meritocracia, com avaliações regulares sob responsabilidade de comissões públicas e garantias, para o caso eventual de dispensa ou demissão, de processo legal, com regras claras e amplo direito de defesa.

A herança do antigo sistema francês de organização do serviço público e de grade de carreiras, que tanto nos influencia, hoje já é questionada até pela École Nationale D’administration, a ENA francesa.

As recentes reformas administrativas de Reino Unido e Portugal adotam boas soluções para o serviço público, tais como: meritocracia, avaliação regular de desempenho, menos carreiras, vinculação geral do servidor e possibilidade de ingresso direto em níveis superiores, além de contratação e salários vinculados à capacidade financeira do Tesouro público. Estes devem ser os pilares de uma administração pública saudável.

Cabe ao Congresso examinar o projeto, e se ele é realmente reformador como afirma o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), reescrevê-lo e adequar o serviço público brasileiro à modernidade —e pela primeira vez, num ambiente democrático.

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