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Guilherme Ziliani Carnelós

As Lidianes e o preconceito arraigado na sociedade

É urgente reforçar políticas públicas para coibir o racismo e a homofobia

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Guilherme Ziliani Carnelós

Advogado criminalista, é sócio do escritório Rahal, Carnelós, Vargas do Amaral (RCVA)

O Dia da Consciência Negra foi muito simbólico neste conturbado 2020. Não apenas pelas sempre fundamentais mensagens de conscientização necessárias à construção de um futuro melhor, mais inclusivo, mas por dois episódios de intolerância muito graves e que demandam atenção.

O primeiro aconteceu na véspera e vitimou João Alberto Silveira Freitas em Porto Alegre, brutal e covardemente assassinado na presença de várias pessoas que nada fizeram para impedir aquela atrocidade.

O segundo aconteceu no próprio Dia da Consciência Negra, quando a advogada Lidiane Biezok, numa padaria, agrediu a funcionária que a atendia. Sem rodeios, afirmou: “Sabe para que você presta? Para pegar meus restos”. Sim, é chocante, é de tirar do sério, mas foi exatamente isso o que foi dito e mais de uma vez.

Abordada por clientes que se indignaram com a situação e pelo próprio gerente do estabelecimento, a advogada foi ainda mais virulenta contra pessoas que ela supôs serem homossexuais: “Sabe o que você traz? Aids”; “Sabe o que você traz? Câncer”; “Sabe o que você traz? Merda vazando do seu c...”.

Depois disso, ainda profanou a palavra “mulher” ao usá-la como uma espécie de antídoto à sua postura pequena e inumana. Ela foi presa em flagrante e, depois de solta, explicou sofrer de transtorno mental.

Independentemente da verdade dessa explicação, o fato é que a ausência de freios morais possivelmente causados pela doença mental certamente não é capaz de introjetar na "psique" da agressora tudo aquilo que ela regurgitou naquela noite. Apenas liberou o que já estava ali arraigado.

O padrão heteronormativo altamente discriminatório demonstrado pela dra. Lidiane é evidente e incontestável: ela acreditava ser superior à atendente de balcão; ela de fato se vê num pedestal de moralidade que a permite agredir "gays" simplesmente por serem eles quem são.

Mulher agride e insulta funcionários e clientes em padaria de São Paulo
Mulher agride e insulta funcionários e clientes em padaria de São Paulo - Reprodução

A dra. Lidiane ainda afirmou achar “bonito respeitar a diversidade”, o que não convence... A maior prova de que ela não acha bonito respeitar coisa nenhuma não está na sua atitude dentro da padaria, possivelmente causada pelo transtorno mental que alega possuir. Está na frase “tenho diversos amigos homossexuais”.

Só quem enfrenta na carne o preconceito sabe o quão fingida é essa colocação, o quão doloroso é perceber que essas pessoas que “até” têm amigos gays, à boca pequena, são as mais maledicentes, o quanto contribuem para um mundo intolerante, o quão escandalizadas ficam se um familiar seu resolve assumir sua orientação sexual.

A tal frase serve de passaporte para piadas discriminatórias (que de piadas só têm o nome), para tratamentos de exclusão e, como ficou claro aqui, para que pessoas se sintam à vontade, absolutamente livres para agir como querem e dizer o que querem: pessoas são demitidas, excluídas de círculos sociais e familiares, são alvo de troça. E, aos excluídos, simplesmente não é dado o direito de se indignar. Se o fazem, recebem o título dado pela dra. Lidiane aos gays: “bicha do c...”

A colocação “tenho amigos” desse ou daquele jeito serve de fachada de respeito à diversidade (qualquer tipo de diversidade, inclusiva e racial, religiosa etc.), quando o interior é nauseabundo, de exclusão e de apoio à violência, a mesma violência contida no discurso do presidente da República quando bradou que “ter filho gay é falta de porrada”.

Felizmente, as recentes eleições municipais mostraram um aumento bastante significativo da representatividade LGBTQIA+ na Câmara dos Vereadores de São Paulo. É necessário reforçar políticas públicas não só de conscientização, mas de efetiva coibição do comportamento homofóbico e transfóbico.

Seria ingênuo acreditar que esse trabalho político removeria o DNA de intolerância do recôndito das almas das Lidianes que por aí existem. Mas esse olhar faria ao menos que essas pessoas que possuem “amigos homossexuais” tivessem vergonha (ou, no mínimo, receio) de abrirem suas bocas para dizer uma patacoada tão ofensiva como essa, ao menos quando o medicamento funcionasse.

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