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Deisy Ventura

Com Biden, saúde volta a ser global: para o bem e para o mal

Estados Unidos retomam liderança na OMS e na cooperação internacional

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Deisy Ventura

Professora titular e coordenadora do Doutorado em Saúde Global da Faculdade de Saúde Pública da USP

O resultado das eleições presidenciais norte-americanas terá forte impacto na área da saúde, sobretudo no plano internacional. Duas grandes mudanças devem ocorrer já no primeiro dia da gestão do presidente eleito, Joe Biden.

A primeira é o anúncio oficial da permanência dos Estados Unidos na Organização Mundial da Saúde (OMS). Mais do que permanecer, trata-se de liderar a elaboração de uma estratégia global de resposta à pandemia, e de influir no atual processo de reforma da organização, no qual, até então, Washington tem desfrutado de notória irrelevância. Outrora maior financiador da OMS, os Estados Unidos perderam este posto em 2020 para a Fundação Bill e Melinda Gates, mas devem retomá-lo em breve.

A segunda guinada será a revogação da regra da mordaça global ("global gag rule"), também conhecida como Política da Cidade do México. Criada por Ronald Reagan, em 1984, ela impede que ONGs estrangeiras recebam recursos dos Estados Unidos caso forneçam serviços, aconselhem ou encaminhem pacientes ao aborto, ou mesmo defendam a sua descriminalização, ainda que o façam com recursos próprios. Típica de governos republicanos, foi revogada em 1993 por Bill Clinton e, em 2009, por Barack Obama.

O atual presidente, Donald Trump, estendeu a mordaça de diversas formas, suspendendo até o financiamento de agências como o Fundo de População das Nações Unidas. Embora ela aumente o número de abortos inseguros e ilegais mundo afora, pois enfraquece a atuação de ONGs que atuam em prol da saúde da mulher, sua função é retórica e ideológica, a serviço da cruzada conservadora contra os direitos sexuais e reprodutivos. Inspirada neste ideário, a aliança integrada pelo Brasil desde 2019 perderá a liderança americana. Os programas internacionais em defesa dos direitos das mulheres tendem a ser retomados e fortalecidos, ampliando o isolamento e o desprestígio de Brasília.

Por outro lado, o presidente eleito ainda não se manifestou sobre a agenda da segurança da saúde global, criada por Obama em 2014 e percebida em certos aspectos como rival da OMS. Na visão norte-americana, a saúde é global porque as ameaças são globais, e investir nela é um tema de segurança nacional.

Como vice-presidente, Biden acompanhou a crise do ebola na África Ocidental (2014-2015) em que Obama liderou a resposta internacional, mas chegou atrasado, quando a crise já alcançava dimensões perigosas. Costurou uma missão das Nações Unidas contra o ebola, atribuindo à OMS papel secundário e técnico.

Em relação à Covid-19, Biden tem feito propostas de criação de novos âmbitos, dos quais a OMS –onde cada um dos 194 Estados-membros tem um voto– apenas faria parte. Esquemas com claro predomínio de países desenvolvidos (por exemplo, envolvendo o G7) podem reduzir ainda mais a capacidade de influência dos países em desenvolvimento, além de priorizar estratégias de vigilância, preocupadas em conter vírus e ameaças nos países mais pobres, e não em promover a saúde das populações.

Há também a expectativa de que os Estados Unidos voltem a investir vultosos montantes em programas de saúde global, como fizeram até 2014, e que ingressem na coalizão pela vacina, a Covax. Para os democratas, a saúde global, além de política externa, é um bom negócio: beneficiários de cooperação são potenciais futuros parceiros comerciais; a cooperação deve beneficiar, além de seus supostos destinatários, empresas norte-americanas, inclusive a indústria farmacêutica.

Por fim, uma valiosa contribuição de Biden para a saúde global foi reconhecer a gravidade e a magnitude da pandemia de Covid-19. Ao designar um comitê científico para cuidar do assunto, a futura gestão interrompe o processo de banalização de crimes contra a saúde pública que resultou da postura de Trump. Afinal, quando o líder de uma grande democracia ocidental recomenda a ingestão de desinfetantes para prevenir a Covid-19 e permanece impune, a conduta criminosa de outros governantes tende a parecer menos grave do que de fato é. Daqui para a frente, é provável que vangloriar-se da infâmia seja tarefa cada vez mais custosa e solitária.

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