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Elcylene Leocádio, Maria José Araújo e Tania Di Giacomo do Lago

Da proteção à intimidação

Quando o sigilo não estiver assegurado, a quem as vítimas de estupro vão recorrer?

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Elcylene Leocádio, Maria José Araújo e Tania Di Giacomo do Lago

Médicas e ex-coordenadoras da Área de Saúde da Mulher do Ministério da Saúde

Proteger mulheres e meninas do estupro é um dever do Estado, e as iniciativas para garantir este direito devem ser apoiadas. Mas se as medidas adotadas com a intenção de protegê-las podem levar à intimidação e à revitimização, a sociedade pode e deve questioná-las. E se um representante do Estado diz que “é difícil entender como se pode ser contra a portaria proposta”, como escreveu o atual coordenador da atenção básica do Ministério da Saúde nesta Folha ​(“Uma portaria para proteger vítimas e punir estupradores”; 11.nov.2020), consideramos necessário explicar.

No papel de coordenadoras da Área de Saúde da Mulher no Ministério da Saúde, fomos responsáveis pela elaboração das primeiras normas técnicas de atenção às mulheres vítimas de estupro. Com base em nossa experiência, acreditamos que obrigar uma mulher vítima de violência sexual a dar detalhes sobre o agressor como precondição à atenção à saúde é ultrapassar o limite da proteção e adentrar um terreno complexo, no qual as mulheres correm riscos (inclusive de morte) que não podem ser minimizados.

Nunca é demais repetir que, na maioria das vezes, a violência sexual contra as mulheres é cometida por familiares ou pessoas próximas. Não é fácil nomear os agressores diante da polícia, pois mesmo com provas incontestáveis a denúncia expõe a vítima a muitos riscos, a começar pela desqualificação de sua palavra, acusações de mau comportamento, responsabilização e agressões morais. A internet tem revelado exemplos chocantes de violência contra essas mulheres vítimas de estupro que ousam denunciar e processar seus agressores.

Se a intenção verdadeira de quem representa o Estado é punir estupradores, outras estratégias podem ser mais eficazes. E aqui vão algumas sugestões: agilizem os processos, garantam o respeito às vítimas desde a denúncia até as últimas etapas dos julgamentos, assegurem medidas protetivas já previstas em lei e garantam o cumprimento de penas justas, independentemente da condição social e econômica de vítimas e agressores.

Se a proteção das vítimas é o que verdadeiramente mobiliza os que representam o Estado, que trabalhem para garantir a todas as mulheres, sem exceção, atenção à saúde integral e humanizada. Que trabalhem para assegurar a cada mulher o direito de decidir se vai —e quando vai— denunciar a agressão sofrida. Afinal, o cumprimento da lei não pode ser um empecilho ao bem comum.

O atual coordenador de Atenção Primária do Ministério da Saúde diz estranhar a indignação causada pela portaria 2.561/2020, que modificou condutas no atendimento médico de mulheres que procuram os serviços de saúde para interromper uma gestação decorrente de estupro. Segundo ele, a nova portaria “só difere da de 2005 em dois pontos: que os profissionais reportem o crime de estupro à polícia e que preservem vestígios para a punição do agressor.”

A exigência de denúncia é o aspecto crítico. Esta mudança incide precisamente nos objetivos da norma técnica desde sua primeira edição em 1998: acolher a vítima e minimizar os agravos decorrentes da violência, por meio da oferta de procedimentos de saúde. A nova portaria substitui esta intenção pela investigação policial da ocorrência de estupro, tanto é que, nos formulários de atendimento contidos na portaria, a mulher deve descrever o(s) agressor(es): tipo físico, roupas, se estava ou não embriagado e apontar testemunha. No caso de agressor conhecido, deve fornecer seu nome completo. Diante disso, a sociedade pode e deve perguntar: é este o papel dos profissionais de saúde no acolhimento da vítima de estupro?

Devem os médicos romper o sigilo previsto pelo Código de Ética com relação ao que ouvem de uma mulher que decide interromper uma gravidez pós-estupro? Entendemos que não. É justamente a garantia do sigilo sobre os fatos relatados pela paciente, ao qual todos os profissionais de saúde estão obrigados, que encoraja algumas vítimas de violência a buscar ajuda. Quando esse sigilo não estiver mais assegurado, a quem elas vão recorrer?

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