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Já vai tarde

Derrocada de Trump pune ataques à civilização e carrega lições para Bolsonaro

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Donald Trump no pronunciamento em que denunciou sem provas fraudes eleitorais - Brendan Smalowski/AFP

"Pelo que Donald Trump representa em termos de risco internacional, dados seu alarmante despreparo e a xenofobia beligerante de sua campanha, vê-lo derrotado não configura questão partidária, nem se reduz ao âmbito norte-americano, mas convém ao mundo inteiro”. Era final de julho de 2016, mas as palavras expressas neste espaço não poderiam ser mais atuais.

A derrota ansiada não ocorreu naquele escrutínio. Demorou mais quatro anos, suficientes para que a anomalia apontada em germe frutificasse e mostrasse seu poder de fazer estragos. Mas a estupidez, finalmente, cobrou o seu preço.

Foram tantas as investidas do republicano contra os pilares da civilização que a reação despertada, sob a forma de um comparecimento histórico às urnas, transformou-o num dos raros detentores do cargo nos Estados Unidos a quem foi negada a reeleição.

Por mais que o oportunismo cafajeste do republicano —reforçado na quinta (5) em discurso contra a democracia— tente minar o processo eleitoral, a vitória do democrata Joe Biden, até onde se pode enxergar, está legitimada. Respeite-se a soberania popular: ela diz que o desafiante prevaleceu.

Biden, que serviu oito anos como vice de Barack Obama, consagra a aposta do seu partido na moderação, no diálogo e no exercício diligente da política. Ao longo das prévias, foram descartadas candidaturas que prometiam combater o rufião da direita com radicalização à esquerda. A escolha da companheira de chapa, a senadora Kamala Harris, coroou esse processo.

A pandemia de coronavírus, com impacto colossal na saúde e na economia, retirou do adversário a sua maior bandeira eleitoral, o baixo desemprego. Também ofereceu aos EUA e ao mundo a oportunidade de conhecer a fundo a capacidade destrutiva de um bravateiro populista alçado ao poder.

Sabotador de primeira hora das melhores práticas sanitárias e disseminador de falsidades sobre origens do vírus e recursos terapêuticos, o presidente concorreu para transformar o seu país num exemplo de descontrole da epidemia.

Perdeu apoio de eleitores mais velhos e viu a infecção espalhar-se por seus redutos conforme o pleito se aproximava. Como se fosse pouco, ajudou, com provocações e afagos a grupos supremacistas, a mobilizar massas urbanas contrariadas com o abuso recorrente da força policial contra negros.

Num período curto e dramático da sua administração, ficou estampada e condensada grande parte das características que fazem da passagem de Donald Trump pela Casa Branca uma ameaça aos valores que, ao longo dos séculos e mediante duras batalhas, construíram a democracia ocidental.

Para compor a personagem do playboy senil convergiram a arrogância dos plutocratas, o ódio dos supremacistas, a pequenez dos isolacionistas, a covardia dos machistas, a ignorância dos obscurantistas, a desfaçatez dos mitômanos e a intolerância dos messiânicos.

Não se trata de idealizar Biden. É saudável a possibilidade de que o novo presidente exerça o poder restrito por uma maioria republicana do Senado, o que ajudará a bloquear projetos temerários como o de manipular a composição da Suprema Corte do país.

Mas o dissenso partidário e o entrechoque institucional tendem a ocorrer, sob Joe Biden, numa frequência distante da algazarra febril e do atropelo de protocolos que marcaram a gestão Trump.

Nesse retorno a uma relativa normalidade, o concerto internacional para lidar com questões que afetam toda a humanidade —como a pobreza, as migrações, o comércio e as ameaças sanitárias, ambientais, financeiras e de segurança— deverá ser resgatado do limbo pelo novo líder da maior potência global.

As nações que quiserem se comportar como párias, condição que parece encher de orgulho o delirante chanceler brasileiro, incorrerão em mais riscos e perderão o grande aliado na irresponsabilidade.

A derrocada de Trump, aliás, está carregada de lições para o presidente Jair Bolsonaro, bajulador e imitador canastrão do americano.

A mais importante delas é que há um preço a pagar na afronta sistemática às boas práticas de governo e de comportamento político. A fatura pode demorar, mas chega.

Há tempo de o presidente brasileiro completar o ajuste necessário em sua administração para navegar as novas águas com menos sacolejos. Sinal crucial de que sua administração ruma à razoabilidade seria mudar a orientação da política ambiental, o que passa pela saída do ministro Ricardo Salles.

Outra providência é Bolsonaro reconciliar-se depressa com a ciência e a prudência na condução do combate à pandemia. Fazer politicagem com vacinas e colocar, pela negligência, ainda mais vidas de brasileiros em perigo é caminho seguro para a punição eleitoral.

O mundo é um lugar melhor desde o momento em que uma maioria de votos se formou para abater o voo populista nos EUA. Que no Brasil as lideranças saibam captar o espírito do tempo —ou feneçam, como Trump, que já vai tarde.

editoriais@grupofolha.com.br

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