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Betty Milan

Legalização do aborto e criminalização do estupro

Não cabe à vítima provar que houve resistência ou não consentimento

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Betty Milan

Escritora e psicanalista, é autora de “O Papagaio e o Doutor” e “Baal”; membro da Academia Paulista de Letras

Na trilha dos países onde o aborto já foi legalizado —63—, o presidente da Argentina acaba de enviar ao Congresso uma proposta de legalização. No Brasil, o aborto só é permitido em casos de estupro, risco de morte materna ou anencefalia.

A legislação precisa ser mudada urgentemente porque é a saúde das mulheres que está em jogo. Claro que é preciso privilegiar a contracepção, mas ela pode falhar. E, como muitas mulheres que não desejam ter filhos acabam praticando o aborto em casa, correndo o risco de ficar estéreis e até mesmo de morrer, a única saída é a legalização.

A psicanalista e escritora Betty Milan - Patricia Stavis - 14.jun.19/Folhapress

Até quando as brasileiras vão ter que se valer de uma sonda para abortar, e até quando o estupro vai ser autorizado por juízes que podem considerá-lo “culposo”, ou seja, praticado sem intenção?
Para que o “estupro culposo" existisse, seria necessário que o estuprador não tivesse condições de refrear as suas pulsões. O que caracteriza o ser humano é precisamente a capacidade de refreá-las. Salvo quando se trata de doença mental. Neste caso, o criminoso tem que ser encaminhado para o exame psiquiátrico e o seu destino pode ser o manicômio judiciário.

O estupro é repetidamente considerado culposo no Brasil por juízes que imputam a culpa à mulher, alegando que vítima nenhuma é estuprada se não tiver uma participação no ato de violência. A participação é deduzida da conduta moral, que passa a ser investigada. Ora, ninguém tem o direito de violar o corpo de quem quer que seja. Pouco importa que o corpo seja de uma carola ou de uma prostituta. Noutras palavras, não pode haver investigação sobre a moralidade da vítima.

De origem tunisiana, a feminista francesa Gisèle Halimi foi também uma grande advogada. Graças a ela o estupro deixou de ser considerado delito para ser considerado um crime. Halimi sugeriu que a impossibilidade de investigar a moralidade figure como lei no Código Penal.

Quando um juiz alega que uma mulher foi estuprada por ser imprudente, ele está afirmando que o homem não passa de um animal incontrolável. Ora, o que caracteriza a sexualidade humana é justamente o fato de que ela pode ser controlada. Daí a sua riqueza e variedade. Ao contrário da sexualidade animal, que, por só visar a reprodução, é invariavelmente a mesma.

Noutras palavras, o estupro é sempre doloso. Pouco importa a conduta da vítima. Porém, de uma mulher violada, a Justiça espera que ela prove a resistência ao agressor, o não consentimento. Por incrível que pareça, de acusadora ela se torna acusada, fica submetida ao sarcasmo de policiais, advogados e juízes.

Não estou querendo dizer que as mulheres devam abrir mão da prudência. Embora nenhum decote exagerado ou nenhuma saia curta justifiquem a violência sexual, enquanto a cultura do abuso existir, precisamos estar atentas. No momento, elas ainda são punidas pela liberdade em relação ao próprio corpo, e o estuprador é despenalizado quando, além de ser uma ferida física, o estupro é uma grave ferida moral.

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