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Dalton de Souza Amorim, Adriana Santos Moreno e Domingos Alves

Plano São Paulo deve ser revisto

Nunca foi plano de contenção, mas de flexibilização da atividade econômica

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Dalton de Souza Amorim

Professor titular do Departamento de Biologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto - USP

Adriana Santos Moreno

Professora do Programa de Pós-Graduação em Medicina da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - USP (FMRP-USP)

Domingos Alves

Professor associado do Departamento de Medicina Social da FMRP-USP

O Plano São Paulo, ou Plano SP, foi lançado pelo governo paulista em 27 de maio para “atuação coordenada [...] com o objetivo de implementar e avaliar ações e medidas estratégicas de enfrentamento à pandemia [...].” Tecnicamente é um algoritmo, mas também um modelo de realidade. Como algoritmo, “premia” municípios que seguem recomendações; como modelo, supõe como funciona a pandemia para contê-la.

O Plano SP mostrou-se péssimo preditor da pandemia de Covid-19. Ribeirão Preto, segundo dados da Secretaria Municipal da Saúde, ingressou na “fase vermelha”, em 10 de junho, com 100,4 novos casos/dia, 3,4 novos óbitos/dia e 91 leitos de UTI ocupados; e ingressou na “fase amarela”, em 7 de agosto, com 311,9 novos casos/dia, 8,9 novos óbitos/dia e 167 leitos de UTI ocupados (respectivamente, 3,1 vezes, 2,6 vezes e 1,8 vez pior). É inaceitável como plano de “enfrentamento à pandemia”.

O Plano SP resulta em ações que agravam a pandemia e confunde a população: protocolos internacionais usam “fase vermelha” para 25 novos casos/dia por 100 mil habitantes —Ribeirão Preto tinha 43,8 no início da “fase amarela”. Algoritmos são escolhas conscientes de parâmetros e pesos. Incapaz em sua versão original de conferir classificação favorável a cidades, foi alterado diversas vezes, diminuindo exigências. Nunca foi plano de contenção, mas de flexibilização da atividade econômica apesar da pandemia.

“Quem se importa?” Comentários à boca pequena são próximos a argumentos da eugenia. Duas teses falsas e cruéis são apresentadas para defender o plano: inevitabilidade e imunidade de rebanho.

Comparações mostram que a tese da inevitabilidade é flagrantemente falsa. Araraquara, a 90 km de Ribeirão Preto e com 250 mil habitantes, teve 56 óbitos até 16 de outubro (237 óbitos/milhão). A gestão da pandemia pelos prefeitos que levam a sério “a inviolabilidade do direito à vida” (artigo 5° da Constituição Federal) de fato mostra um número inevitável de óbitos. Taxas de óbito acima de mil por 1 milhão de habitantes não são apenas evitáveis: são deploráveis.

Imunidade de rebanho, no contexto da pandemia, de certa maneira corresponde a um gestor declarar: “Deixei tanta gente morrer que quase não tem mais quem seja contaminado”. É uma autodeclaração de incompetência. Para o cientista americano William A. Haseltine, a “imunidade de rebanho é um outro nome para assassinato em massa”. Assim deveria ser tratada.

Há solução? Sim. A principal é a revisão imediata do Plano SP. Precisamos de um plano real de contenção da pandemia. Não o fechamento de tudo, mas mudança dos indicadores: deve haver controle efetivo do número de novos casos. A economia é consequência. A falsa dicotomia entre economia e saúde resulta nesse modelo ruim. O jornal britânico Financial Times mostrou que má gestão da pandemia causa maior prejuízo à economia.

A aposta subjacente era que, à espera da vacina, haveria progressão lenta de novos casos. E que o investimento para minimizar óbitos (leitos) seria redução suficiente de danos. Modelo equivocado. Sem ênfase no controle de novos casos (há comparações com a semana anterior sem considerar o patamar), o número tem sido tão alto que, mesmo com menor letalidade, a mortalidade causa vergonha.

Em 16 de outubro, a mortalidade no Peru, segundo pior país do mundo nesse indicador, era de 1.014 óbitos/1 milhão de habitantes (1M); do Brasil, 719/1M; Ribeirão Preto, 1.132/1M, Campinas, 1.183/1M; e Santos, 1.566/1M. Entre 12 de setembro e 2 de outubro, a mortalidade no estado de São Paulo avançou 9,42% e, em Ribeirão Preto, 16,7%. Esses números não estão nos relatórios do Plano São Paulo.

Nos lugares onde há controle real —Vietnã, Hong Kong, Nova Zelândia, Austrália, China, Senegal; países grandes e pequenos, muito ou pouco populosos, ricos e pobres—, foi seguido o protocolo “Tris”: testagem, rastreamento e isolamento com suporte. Em maio, o imunologista americano Anthony Stephen Fauci repetia: “Test, test, test”. Solução simples. A economia desses países está bem. Ao estado de São Paulo não falta ciência, tecnologia ou infraestrutura. Falta visão. Modelo ruim, algoritmo ruim, pandemia fora de controle.

Os óbitos acumulam-se à porta dos gestores municipais e estaduais. Faltam muitos meses para a vacinação em massa. Quem vai se desculpar com as famílias?
Está na hora de as instâncias encarregadas de proteção da sociedade cumprirem seu dever.

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