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Julia Marisa Sekula

China: ambientalismo autoritário ou autoritarismo ambiental?

É preciso resgatar a fé nas instituições para gerar adesão voluntária da população

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Julia Marisa Sekula

Economista e cientista política, é coordenadora do Programa de Clima e Segurança do Instituto Igarapé, fundadora da FinanSOS e coautora de ‘Brasil: Paraíso Restaurável' (ed. Sextante)

Pássaro, pássaro, motosserra. Caminhão, grito, pássaro. É o som da floresta amazônica que, como um código Morse, conta a história do desmatamento ilegal na região. Uma startup da Califórnia, em parceria técnica com uma empresa de tecnologia da China, está usando tecnologia bioacústica e inteligência artificial para escutar a floresta.

Os pequenos celulares montados nas copas das árvores identificam o barulho de motosserra numa área de proteção ambiental e automaticamente alertam comunidades indígenas próximas. A tecnologia, de forma relativamente simples, permite ação em tempo real e pode fornecer soluções importantes para o combate ao desmatamento na Amazônia.

Considerando a parceira chinesa nessa empreitada, surgem discussões importantes sobre a natureza das políticas ambientais da China —onde vige um sistema autoritário— e das principais empresas de tecnologia daquele país. O modelo chinês traz lições para enfrentar as ameaças climáticas? Desde que lançou um novo modelo de desenvolvimento econômico e se tornou líder de investimento em energia renovável, a China atraiu um novo público para esse debate. Diante das ameaças climáticas, os processos democráticos, demorados, nos permitirão alcançar soluções em tempo hábil?

O ambientalismo chinês exibe características autoritárias —fundadas na noção de que determinados fins justificam atitudes drásticas, geralmente embasadas por metas técnicas. Em 2013, por exemplo, como medida de combate à poluição, a China procurou baixar de 68.5% para 65% a parcela de carvão na matriz energética.

Esse decreto foi apoiado pela sociedade civil e diversas camadas do governo, a ponto de se anunciar que a promoção de funcionários públicos daquele ano teria como parâmetro essa meta específica. O percentual da matriz energética de carvão caiu de 68.5% para 60.4% naquele ano. De tanto entusiasmo, viam-se famílias jogando fora os equipamentos de carvão. A oferta de gás natural não conseguiu atender à demanda extraordinária, deixando milhares de residências no frio do inverno do nordeste Chinês. As metas funcionarem bem —até demais.

Noutro caso, em Xangai, o governo procurou atingir um índice de 35% de reciclagem e introduziu novas regras —desta vez, sem envolver a sociedade civil. Moradores da cidade foram obrigados a separar o lixo em várias categorias pouco intuitivas, em horários restritos e sob fiscalização. Em pouco tempo, as lixeiras serão equipadas com reconhecimento facial para coletar dados e automatizar as denúncias.

Os catadores autônomos de lixo já estão desaparecendo. Mesmo um jornal afiliado ao Partido Comunista, diante do rigor para o atingimento das metas de reciclagem, reconheceu que a cidade entrara numa "nova era de coerção".

É evidente que essas metas ambientais têm um custo: o da liberdade e privacidade das pessoas e, por vezes, o de ameaças diretas aos direitos humanos (tal como a política chinesa do filho único, que também teve cunho ambiental). Apesar disso, a percepção predominante na população chinesa é a de que tais sacrifícios não são em vão. O espaço é cedido voluntariamente para o governo assumir: "Guojia xuyao" (“o país está precisando”). Essa abertura ajuda o governo a usar as políticas ambientais como um instrumento de centralização de poder (como no caso da reciclagem) e as torna elas uma ferramenta, também, de uma política de "autoritarismo ambiental".

Essa dicotomia entre o "ambientalismo autoritário" e o "autoritarismo ambiental" chinês foi retratada no livro "China Goes Green", de Yifei Li e Judith Shapiro. Na obra, os autores exploram os dois conceitos, e qual seria o real projeto político chinês.

Nesse sentido, a discussão ganha outras facetas quando considerada a rota de seda digital —da qual, tal como no pequeno caso da floresta amazônica, o Brasil indiretamente faz parte. Do Equador até a Mongólia, a China tem costurado acordos de fornecimento de infraestrutura digital junto a políticas de desenvolvimento verde: a colonização de dados anda ao lado do combate às mudanças climáticas.

Mas se engana quem acha que isso é apenas um problema relacionado à China. Até onde nós, brasileiros, estamos dispostos a abrir mão de algumas liberdades para o Estado brasileiro em troca de um futuro mais seguro e verde —caso esse seja constatado o modelo mais eficiente? E como essa urgência pode ser instrumentalizadas contra as pessoas e a democracia? Hoje eu aceito de braços abertos os celulares nas copas das árvores na Amazônia. Trata-se de uma iniciativa louvável, em parceria com uma série de atores, para proteger nossos povos originários. Mas e amanhã, quando for outra tecnologia, com outros propósitos?

Durante a crise da Covid-19, aceitamos, enquanto população, uma série de medidas indiscutivelmente necessárias para combater o vírus. As outras crises serão mais frequentes e mais duras.

Os casos da China indicam três lições pragmáticas de contenção para o Brasil diante das urgências ambientais: é através de métricas rigorosas, feitas em conjunto com a sociedade civil e sistemas de incentivos, que as políticas ambientais se tornam um sucesso. O maior desafio encontra-se na perda de confiança do brasileiro nas instituições governamentais —o sacrifício individual porque o “país está precisando” parece cada vez mais longe.

O debate, então, não se trata do modelo chinês como autoritário, mas de uma estrutura que gera confiança e adesão voluntária da população. Diante das ameaças climáticas, a pergunta é: como resgatamos a fé nas instituições, dentro de um ambiente democrático, de modo a permitir que a nossa sociedade faça grandes avanços ambientais em prol de um futuro do coletivo?

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