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Décadas perdidas

Como nos 1980, país fica mais pobre; desta vez, conta com instituições melhores

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Manifestantes contra o aumento da tarifa de ônibus enfrentam a polícia em São Paulo, no mês de junho de 2013 - Eduardo Knapp - 16.jun.13/Folhapress

O Brasil perdeu a década que chega ao fim. Em termos objetivos e mensuráveis, conforme reportagem publicada nesta Folha, é mais pobre hoje do que há dez anos, condição impensável para um país de tantos atrasos, carências e desigualdades. Entretanto um fracasso dessa magnitude não se limita aos aspectos econômicos.

A considerar só estes, o desastre de agora pode ser tido como menos traumático que o do período 1981-90, a primeira década a merecer o epíteto de perdida —aqui e no restante da América Latina.

Naquele decênio entrava em colapso um modelo de desenvolvimento que proporcionara, desde meados do século 20, taxas aceleradas de expansão industrial, urbanização e enriquecimento, ainda que com distorções e disparidades.

Agora, o país conta com protocolos econômicos para evitar uma explosão inflacionária como a que se seguiu à crise da dívida externa de 40 anos atrás —ao menos até a tempestade perfeita formada pela pandemia, por Jair Bolsonaro e pela necessidade de ajuste fiscal anterior até mesmo a este governo.

No mais, o Brasil se encontra integrado ao comércio e aos mercados financeiros globais; no decênio, ampliou o aparato de seguridade social para minorar os impactos da pobreza e do desemprego.

Rupturas na trajetória de desenvolvimento se correlacionam, de modo inevitável, com abalos nos alicerces políticos e institucionais.

Se a derrocada dos anos 1980 contribuiu para que o término da ditadura fosse menos lento, seguro e gradual do que gostariam os militares, a dos 2010 abrigou a pior recessão desde o restauro da democracia, gestada na desastrosa gestão de Dilma Rousseff.

Houve pane no que parecia um consenso mínimo para o funcionamento do país pós-Constituição de 1988 —a convivência entre um Estado amplo, com missões sociais, e o respeito a normas básicas de responsabilidade econômica, ambos geridos por coalizões partidárias que esvaziavam radicalismos.

Assim se deu ao longo de quatro mandatos presidenciais, divididos entre o tucano Fernando Henrique Cardoso e o petista Luiz Inácio Lula da Silva. Esse aprendizado em governança, porém, não se mostrou sólido o bastante.

O primeiro pilar a ruir, já no final dos anos Lula, foi o da prudência orçamentária. Uma quadra de prosperidade, impulsionada pela fartura chinesa e global, inebriava o Planalto e encorajava o presidente a escolher uma sucessora que não deveria lhe fazer sombra.

O malogro estrepitoso da gestão Dilma, que converteu alquimia econômica em política pública, fez-se acompanhar da eclosão de mal-estares na sociedade —o que dificilmente terá sido mera coincidência.

As mais notórias e espantosas manifestações do fenômeno foram as jornadas de 2013, quando protestos contra o reajuste de tarifas de transporte coletivo deram origem a uma onda de atos populares, não raro violentos, com as mais difusas bandeiras.

A insatisfação caótica com governantes e legisladores ganharia contornos e alvos mais definidos a partir do ano seguinte, quando a Lava Jato devastou —com méritos indiscutíveis e excessos consideráveis— expressivas parcelas da elite dirigente acusada de corrupção.

No mesmo 2014, a disputa pelo poder se tornaria mais desleal com a reeleição de Dilma —que negou a crise e satanizou ajustes que ela própria proporia sem convicção em seu segundo mandato, atiçando seus cada vez mais numerosos adversários a promover boicotes e sabotagens no Congresso Nacional.

Sucedeu-se o processo de impeachment da petista, que, como temia esta Folha, manteve envenenado o ambiente político, com novas doses de ressentimento e polarização. Àquela altura, estava em curso uma recessão só comparável, talvez, à dos anos 1980.

Reformas urgentes e necessárias feitas surpreendentemente durante a breve gestão de Michel Temer (MDB) se viram prejudicadas pela carência de legitimidade do ex-vice, agravada pela revelação de uma conversa nada republicana sua com um grande empresário.

É notável que também a primeira década perdida tenha chegado aos estertores com a eleição de um aventureiro despreparado que renegava a política tradicional —muito embora Fernando Collor, deposto em 1992, pareça hoje um aprendiz comparado a Jair Bolsonaro.

A diferença entre aquela década e a atual é que esta se beneficia do legado da estabilidade econômica das gestões de FHC e de Lula. Sob o duo fortaleceu-se a democracia, que funciona, e aperfeiçoou-se o sistema de freios e contrapesos, que evoluíram quase ao nível de um país desenvolvido.

Espera-se que, além do que mal que já fez no combate à pandemia, Bolsonaro não coloque também essas conquistas a perder.

editoriais@grupofolha.com.br

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