Descrição de chapéu
Bia Braune

Legado de Nilton Bravo, o Michelangelo dos botequins, está sumindo

Em tempos de pandemia sem boemia, toda uma arte urbana pode desaparecer entre biritas e tira-gostos

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Rio de Janeiro

Dizem que a Capela Sistina costuma receber mais de 20 mil visitantes por dia. Mas naquela tarde, num dos botecos mais típicos da Lapa, contei só sete presentes. Ainda nem havia isolamento social. Tratava-se do menor simpósio do mundo sobre a obra do pintor Nilton Bravo.

“Você também é fã do meu finado tio?”, perguntou uma simpática parenta, enquanto eu me sentava embaixo de um lago e uma montanha que iam quase até o teto. Pois então: sou. Bem menina, a caminho da escola, no Méier, passava todos os dias por um botequim com imenso painel assinado por ele. E desde então, apesar de só entornar muita Coca zero, iniciei um acervo na memória.

(Se o leitor não frequenta pé-sujos na zona norte do Rio, explico: nada é mais carioca do que o trio azulejo, ovo cor-de-rosa e uma brava paisagem. Até a pastelaria do Beiçola, na série “A Grande Família”, da Globo, tinha um Nilton Bravo cenográfico.)

E foi naquele grandioso microevento que apurei mais detalhes sobre seu legado. Teve vaquinha retratada em açougue, Adão e Eva no Bar Paraíso e uma mistureba de Cristo Redentor com Torre de Belém atrás do balcão de uma padaria. Sua imaginação voava, a ponto de Carlos Heitor Cony o apelidar de Michelangelo dos botequins.

Para minha surpresa, soube que hoje restam menos de 20 obras no Rio —eram mais de mil entre 1960 e 1980. Por sorte, ali à mesa, havia um porta-guardanapos, caso eu derramasse uma lágrima. Deu vontade.

O que mais me tocou, porém, foi descobrir que Nilton aprendeu seu ofício ainda garoto, com o pai, Lino Bravo. E que os dois pintaram muito juntos. Cada um numa metade da obra e se encontrando no meio, em perfeita harmonia kitsch.

Nisso, uma família entrou para jantar. A filha apontou para o mural: “Que bonito!”. Confesso que me bateu uma esperança. Puxei até um guardanapo. Era aquela arte resistindo mais um dia, enquanto pedíamos bolinhos de bacalhau. Em 2020, esse boteco também fechou.

Bia Braune é roteirista e jornalista, autora do “Almanaque da TV”.

Quadro de Nilton Bravo na parede do Adega Flor de Coimbra, tradicional botequim do Rio que fechou durante a pandemia
Quadro de Nilton Bravo na parede do Adega Flor de Coimbra, tradicional botequim do Rio que fechou durante a pandemia - Rixa/Arquivo Pessoal
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