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Tiago Ferro

País esgotado

Sociedade derrotada, tempo morto; a história passou e nós ficamos

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Tiago Ferro

Crítico literário e autor do romance "O Pai da Menina Morta” (Todavia), vencedor do Prêmio Jabuti em 2019

Talvez nem todos saibam —ou se lembrem—, mas éramos mais felizes quando subdesenvolvidos. Havia um grande debate sobre como superar essa condição. E se o debate estava dado era porque, mínima que fosse, a história nos deixava uma brecha para passarmos ao outro lado, para perdermos o prefixo “sub”.

Em nossa trajetória de país independente mudamos muito. Estivemos entre as economias que mais cresceram no século 20 e por pouco não superamos nossa miséria —isso no início da década de 1960, quando a brecha era maior. Mas veio o golpe de 1964 e o futuro foi interrompido —​naquele momento ninguém sabia que se tratava de um cancelamento, não de uma interrupção.

O escritor e editor Tiago Ferro
O escritor Tiago Ferro - Renato Parada - 9.mar.18/Divulgação

A ficha demorou a cair e quem intuiu primeiro foi Chico Buarque em seu romance “Estorvo”, lançado em 1991. O desastre que nos aguardava na próxima curva da história estava cifrado na forma do livro: a entrada do Brasil no mundo globalizado e homogeneizado pela ideologia neoliberal, sem nenhum tipo de mediação para a condição de país periférico. Sem horizonte de superação do atraso, a realidade violenta e injusta do país se apresentava como a realização final de nosso processo de formação.

“Estorvo” foi decifrado pelo crítico Roberto Schwarz no ano de seu lançamento, que de forma certeira perguntou-se: “Estaríamos nos tornando uma sociedade sem classes, sob o signo da delinquência?”. Naquele momento, ainda muitos disseram que não; que o crítico era pessimista, marxista jurássico etc.

Hoje, quando o esgoto miliciano sobe até diversas esferas do Estado, a resposta só pode ser sim.
Eleições diretas, Constituição de 1988, fim da inflação, privatizações, Bolsa Família. E permanecemos na mesma sociedade estorvada.

Chico continuou investigando de forma crítica a sociedade brasileira, o que explica ter se tornado uma espécie de “inimigo público número 1” dos estratos conservadores do país, que se radicalizaram a partir de 2014 —não por acaso o presidente Jair Bolsonaro se recusou a assinar o Prêmio Camões de Literatura, recebido pelo artista em 2019. Alguns exemplos dessa investigação: a canção “Caravanas”, retrato vertiginoso de um Brasil arcaico que se reinventa sem parar; em tom irônico, o romance “Essa Gente” escancara o ridículo, mas também a violência da “gente ordeira e virtuosa”, e deixa os setores progressistas ainda embalados por antigas utopias entre o exílio e o suicídio, uma vez que bolhas artificiais de civilidade já não são mais viáveis.

Antonio Candido, em ensaio de 1970, trata das duas principais noções de país que tivemos: durante o século 19 e início do 20 predominava a ideia de “país novo”, sendo substituída pela de “país subdesenvolvido” com a Revolução de 1930. Se na primeira há uma imagem amena do atraso, prometendo um grande futuro pela frente, na segunda surge a percepção catastrófica do atraso, e a necessidade de intervenção.

Minha proposta é que a sociedade sem forma intuída por Chico —e portanto a nossa— inaugure uma terceira noção, que chamei de “país esgotado”. Sociedade derrotada, tempo morto. A história passou e nós ficamos. Sem direção, sem desenvolvimento ou subdesenvolvimento. Sem projeto de futuro, sem nada. Ou com tudo o que fomos capazes de construir.

TENDÊNCIAS / DEBATES
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