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Rogério Campos

Refis da Covid e as externalidades expostas pela transação

Programa atenderá àqueles que nunca foram realmente contemplados

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Rogério Campos

Procurador da Fazenda Nacional, assessor especial no Ministério da Economia e mestrando em políticas públicas e governo (EPPG/FGV)

A adoção de programas de recuperação fiscal, com objetivo de impulsionar a arrecadação e superar reflexos de crises econômicas na saúde fiscal das empresas, têm no Refis, criado pela lei nº 9.964/00, sua origem.

A partir dele, dezenas de programas foram editados, bianualmente. Não é difícil intuir que essa sucessão trouxe efeitos deletérios à arrecadação, criando incentivos perversos, estimulando a não conformidade fiscal por agentes racionais, que passaram a utilizar a contração de passivos tributários como mecanismo inerente ao seu processo produtivo, prejudicando a concorrência e a livre iniciativa.

Gabriel Cabral/Folhapress

A acumulação de passivo servia ao financiamento desse grupo, com plena capacidade de pagamento, em prejuízo da concorrência —em especial dos novos, pequenos e microempreendedores.

Ainda que o Refis tivesse potencial de contribuir com a superação dessas crises e a retomada econômica, por ser linear e impessoal, beneficia aqueles que sequer precisariam de ajuda (inclusive beneficiados pela crise que arrebatou demais setores) ou, pior, aqueles devedores contumazes, que passaram a utilizar da expectativa de descontos e prazos como elemento na sua cadeia produtiva.

Superando essas vicissitudes, foi modelada a transação tributária (lei nº 13.988/2020). Atribuindo descontos exclusivamente àqueles que possuem capacidade de pagamento comprometida, a transação expõe, às vísceras, as mazelas do Refis. Duas externalidades negativas do Refis foram maximizadas pela transação, expondo a inadequação da utilização da primeira quando plenamente implementada a segunda.

O modelo horizontal do Refis concede benefícios aos contribuintes que deles não necessitam, seja porque não afetados pela crise ou por ela beneficiados, bem como aos sonegadores e devedores contumazes. Materializa, assim, renúncia de receita relevante, em cenário fiscal delicado. Agrava-se a renúncia ao atribuir benefícios aos sonegadores, devedores contumazes ou empresas com ampla capacidade de pagamento, exigindo de toda a sociedade, inclusive daquelas duramente afetados pela crise, arcar com as medidas compensatórias previstas na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF): “elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição” (art. 14, II, LC 101/00).

Sequer a demonstração de que a renúncia será considerada na estimativa de receita da lei orçamentária, nos termos da LRF, é factível: seja porque o Ploa (Projeto de Lei Orçamentária Anual) já foi encaminhado, seja porque qualquer renúncia afetará as metas fiscais. Nem mesmo a vã ilusão do “orçamento de guerra” permite aventuras hermenêuticas nessa seara, considerando que os efeitos da medida projetar-se-ão para além de 2020.

Ademais, no Refis, inclusive pelo esforço da medida compensatória, as concessões são menores que as praticadas na transação, onde há hipótese de desconto de todos os acréscimos; ou, inclusive, a possibilidade de remissão sobre parte do crédito principal, nos casos de pequeno valor. Em suma, a partir de análise criteriosa de dados repassados pelos próprios contribuintes e de uso geral da administração tributária, a transação contempla incentivos adequados, em especial para aqueles mais severamente afetados pela crise, assegurando seu retorno ao sistema produtivo e concedendo descontos compatíveis com a capacidade contributiva, eliminando assim o risco moral.

Atribuindo melhores incentivos àqueles que necessitam, a partir dessa análise criteriosa que se reflete no balanço geral da União, os ganhos são substancialmente melhores, como qualquer política pública adequadamente focalizada. Com a focalização, os benefícios são mais bem alocados, atendendo àqueles que nunca foram realmente contemplados pelo Refis.

Inegável, seja pelo novo paradigma, seja porque as contas públicas não comportam renúncia de receita, a criação de Refis beneficia exclusivamente contribuintes que dele não necessitam, e dar-se-á às custas de todos os demais, inclusive daqueles em dificuldades, não se coadunando com os anseios da sociedade, do Estado de Direito e da justiça fiscal.

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