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Cristiano Rodrigues

Solidariedade durante a pandemia, uma utopia triste?

A pandemia apenas revelou quem somos, mas foi incapaz de alterar de maneira drástica nossa essência

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Quando a pandemia da Covid-19 chegou ao país os otimistas vieram nos tranquilizar e garantir que a humanidade sairia melhor após uma crise sem precedentes. A solidariedade e o empenho mundial em prol do bem comum prevaleceriam sobre interesses particulares e casuísmos de ocasião. Porém, a pandemia apenas revelou quem somos, mas foi incapaz de alterar de maneira drástica nossa essência. Então, o que a crise da Covid-19 tem revelado sobre a sociedade brasileira?

Primeiramente, a extensão da nossa desigualdade —de classe, raça, gênero e regional—, um dos fatores a contribuir para fragilizar os laços de solidariedade entre os cidadãos. É emblemático que, no Rio Janeiro, os primeiros casos de Covid foram relatados entre pessoas de classe média-alta, moradores do Leblon, recém-chegados de férias na Europa.

Mas a primeira vítima fatal no estado foi uma empregada doméstica de 63 anos, negra e moradora de Miguel Pereira, contaminada ao ter que trabalhar na casa da patroa, que contraiu Covid na Itália. Essa primeira morte indicou uma tendência, pois a maioria das vítimas do novo coronavírus no Brasil é negra, moradora das periferias e mais jovem do que em outros países.

A hipocrisia é outro traço da sociabilidade brasileira que a pandemia reavivou.

No discurso, somos favoráveis ao isolamento social, repetimos ad nauseam a hashtag #ficaemcasa e ovacionamos profissionais de saúde que arriscam suas vidas. Na prática, faltam políticas públicas voltadas para a proteção de trabalhadores que não têm o privilégio de ficar em casa.

Jair Bolsonaro, com seu discurso negacionista; Carlinhos Maia, e sua festa de Natal de gosto duvidoso; e Neymar, que planeja receber cerca de 500 convidados na celebração de final de ano, são o epítome da hipocrisia brasileira. Não veem qualquer contradição em defender o isolamento social publicamente ao mesmo tempo em que expõem os outros ao risco, já que se orientam meramente pela vaidade.

A defesa de privilégios, tão bem descrita por Milton Santos ao afirmar que “a classe média não quer direitos, ela quer privilégios, custe os direitos de quem custar”, veio à superfície em variadas formas em 2020.

Da empregada doméstica do Leblon aos ministros do STJ e STF solicitando prioridade no recebimento de vacinas, elementos de uma sociedade altamente hierárquica se apresentaram com requintes de crueldade.

Por isso, não é inequívoco pressupor que um país melhor surgirá no pós-pandemia. Antes, é fundamental enfrentar seriamente nossas desigualdades, ou seguiremos vendo a solidariedade se revelar como apenas mais uma utopia triste.

Cristiano Rodrigues é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais; doutor em sociologia pelo Iesp-Uerj

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