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Ricardo Fabrino Mendonça

Um fatal jogo de espelhos

Bolsonaro está preso em reflexos infinitos e não vê nada que não a si

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Ricardo Fabrino Mendonça

Professor do Departamento de Ciência Política da UFMG

No último sábado (12), em mais um tweet destinado a mobilizar a matilha digital contra Mariliz Pereira Jorge, colunista desta Folha, o presidente da República explicitou a máxima que guia seu comportamento: “Acuse-o do que você faz, ...chame-o do que você é". Trata-se de máxima extremamente eficaz e amplamente empregada em todas as turmas de quinta série do mundo.

Geralmente, as pessoas crescem e se envergonham de já a terem empregado, apesar de sua indiscutível utilidade. Outros seguem a vida inteira agarrados na incapacidade de perceber que não veem senão espelhos. Eles ficam presos na eterna dinâmica especular, que projeta sobre os outros o comportamento daquele que está em seu centro. Com medo de que a legião de imagens produza aquilo que, ao fim e ao cabo, é o objeto do centro que deseja, este nunca consegue sair dali e reproduz continuamente seus próprios temores.

Esse jogo de espelhos infinitos é definidor de discursos e práticas de Jair Bolsonaro. É impressionante sua capacidade de acusar os outros daquilo que diz ou faz cotidianamente. As acusações de incompetência, de violência, de perseguição, de traição, de privilégio aos filhos, de agigantamento do Estado, de uso das instituições em direções não republicanas... Isso para não falar da acusação de que seus oponentes seriam ideológicos. É tudo tão explícito. É tudo tão evidente. É tudo claro e límpido como um espelho.

A tática é a de sempre: “Acuse-o do que você faz...” E é dessa forma, porque essa é a visão que ele tem do Estado. Foi acusando governantes de fazer a pequena política que ele se alçou. Foi criando desavenças e tretas dentro das próprias Forças Armadas que ele se lançou. Foi dizendo que os outros mentiam que ele clamou pela verdade. Foi julgando os outros que construiu um cristianismo persecutório e odiento que em nada lembra ensinamentos amorosos e justos.

Foi imaginando um comunismo inexistente que ele aprendeu a projetar o que seria ter um Estado aos seus desígnios. Foi pensando em como vê outros povos que deduz como eles agem. É projetando um Gramsci inexistente que trava todos os dias uma guerra cultural, que esvazia as palavras de sentido e dá a elas o sentido que têm na sua cabeça. E é lembrando seus pesadelos do passado (e eles hão de persegui-lo sempre) que ele calcula os atos dos outros.

Bolsonaro não conhece outra possibilidade. Ele faz e reproduz o que sempre acusou os outros de fazer porque é incapaz de compreender outra possibilidade de ação. Ele está preso entre espelhos e não vê nada que não a si. Bolsonaro quer o Estado ao seu livre dispor. Quer a própria família tratada sempre com filé, independentemente do que aconteça aos outros. Quer manter debaixo da bota a instituição da qual teve que sair pela porta dos fundos. Quer tornar-se um pária mundial, porque acha que todos os outros são como ele.

​Sua trupe vai à forra, toca sanfona, inventa planos, produz relatórios, lacra nas redes e dissemina a negação porque nunca conseguiu produzir uma afirmação. Cotidianamente, deixa mais claro, no jogo de espelhos deste país, que o Estado não é levado a sério.

Evidencia que a República nunca criou um sentido de comum, capaz de constranger projeções egoicas que se lançam sobre nós. Bolsonaro não sairá da frente do espelho. Prestem atenção no que ele diz dos outros: este será sempre o melhor jeito de se compreender o que ele é e como vê a si próprio.

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