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Luciana Temer

Violência sexual infantil a um clique

Poderosa indústria pornográfica retroalimenta absurdo de forma perversa

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Luciana Temer

Advogada, professora da Faculdade de Direito da PUC-SP e presidente do Instituto Liberta

Uma menina chinesa é adotada por um casal americano e forçada a participar de vídeos pornográficos aos nove anos de idade. Aos 23, ela ainda luta para que seus vídeos parem de circular na internet.

Imagino que você, como eu, pense imediatamente na chamada deep web, na qual pessoas de bem não estão, porque é onde circula o crime. Mas não. Segundo reportagem recente do New York Times, reproduzida pela Folha, estamos falando do Pornhub, um site que tem 3,5 bilhões de visitas por mês, mais do que Netflix, Yahoo ou Amazon.

Pornhub
Logo do site Pornhub - Divulgação

Vamos então falar um pouco sobre internet e violência sexual. Há quatro anos, quando criamos o Instituto Liberta e nos aprofundamos no drama da exploração sexual de crianças e adolescente, constatamos que digitar “novinha” no Google nos leva a inúmeras imagens e vídeos de cunho sexual. À época relacionamos as letras de funk e sua apologia à figura do “sexo com novinhas” e pensamos em como enfrentar isso.

Mais tarde, quando conhecemos Gail Dines, socióloga britânica que há 27 anos estuda a indústria da pornografia e sua influência e reflexos na sociedade, entendemos que o funk tem muito dessa cultura pornográfica que moldou as novas gerações. O estilo musical não é origem do problema, é resultado.

Mergulhamos então nos sites de pornografia e encontramos filmes como “pai se divertindo com a filha” ou “professor dando nota para aluna”. Apesar de muitas meninas parecerem adolescentes, supomos que são maiores de idade; afinal, estamos em sites lícitos, pagos com cartões de crédito.

Mas este fato não tira a gravidade da questão, já que se trata de incitação à violência sexual. Essa banalização da violência sexual infantil é tratada na nota técnica nº 11/2017, documento do Ministério Público Federal (Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão) que fala justamente sobre isso e é denominado “Liberdade de expressão artística em face da proteção de crianças e adolescentes”.

Para que o vídeo seja considerado criminoso, a nota conclui que é necessário que haja efetivamente a participação de criança ou adolescente. Não concordo de forma alguma, pois entendo que uma sociedade que tem como fundamento a dignidade da pessoa humana não pode pactuar com certos comportamentos. Mas o que texto do New York Times nos mostra é que, ao contrário do que supúnhamos, muitos desses filmes são violências reais, abusos e estupros, não simulações.

O que ocorre é que o Pornhub, de forma leviana e ancorado na tese da irresponsabilidade de sites e plataformas por conteúdo postado por usuários, aceita todos os vídeos sem (ou quase sem) nenhum filtro. E são cerca de 6,8 milhões por ano, muitos deles de violências sexuais que está ajudando a divulgar.

Em decorrência de pressões da sociedade civil, o site decidiu banir termos de busca como “estupro”, “pré-adolescente” e “pedofilia” (imagine que eles existiam!). No entanto, se você digitar algo como “est*pro”, encontrará 1.901 vídeos.

Mas tem solução? O que é possível fazer? Nicholas Kristof, que assina a reportagem, ao final sugere três ações bem simples e nada radicais para refrear esse absurdo: permitir que apenas usuários verificados postem vídeos; proibir downloads; e aumentar a moderação (verificadores dos filmes postados).

Após a repercussão, o Pornhub anunciou a adoção dessas três medidas, alegando que já estavam sendo construídas desde abril. Mas a verdade é que, sem pressão social, é muito difícil que medidas realmente efetivas se concretizem; afinal, o site fatura com cerca de 3 bilhões de impressões de anúncios por dia e, com certeza, não quer abrir mão disso.

Sabemos que não são os sites pornográficos os culpados por esses crimes, que na raiz do problema está uma cultura patriarcal, machista e violenta. Mas também sabemos que só será possível mudar essa cultura antiga se enfrentarmos de olhos bem abertos a atual e poderosíssima indústria pornográfica, que a retroalimenta de forma ainda mais perversa. A nossa sociedade precisa falar sobre violência sexual infantil e, para isso, tem que falar de pornografia.

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