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Paulo Lotufo

Clínicas particulares devem aplicar vacina contra o coronavírus? NÃO

Proteção individual só virá quando imunização atingir a todos, pobres ou ricos

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Paulo Lotufo

Epidemiologista e professor da Faculdade de Medicina da USP

Em 1912, no naufrágio do Titanic, os viajantes da terceira classe morreram mais que os da primeira. Motivo: a distribuição de botes salva-vidas era diferenciada pela classe de cabines. Depois desse evento fatal, a discriminação progressivamente se reduziu na navegação marítima.

Em anos próximos ao desastre com o Titanic, a poliomielite emergia em todo o mundo, causando mortes e paralisias permanentes. Sem prevenção ou cura. Atingiu até o presidente americano Franklin Roosevelt. Porém, somente na década de 1950 surgiram vacinas eficazes para a doença, idealizadas por Salk e Sabin, que cederam os direitos de uso desde que a aplicação fosse gratuita.

No Brasil, a vacinação gratuita para poliomielite iniciou-se em 1961. Nos anos 1980, decidiu-se eliminar de vez a poliomielite no país com a Campólio. Uma ação bem-sucedida, que permitiu nos anos seguintes vacinar para o sarampo. A ação governamental dirigida a toda a população eliminou a paralisia infantil e reduziu a mortalidade na infância. Antes disso, entre 1966 e 1973 erradicou-se a varíola pela vacinação. Posteriormente, mais vacinas foram incluídas no programa do Sistema Único de Saúde, criado em 1988.

As vacinas sempre foram gratuitas porque a imunização em massa é uma das formas mais efetivas em reduzir desigualdades sociais. Se o exemplo da vacinação pública, universal e gratuita já mostrava a maturidade da saúde pública brasileira, nos anos 1990 surgiram dois desafios: a Aids e o transplante de órgãos.

Quando surgiram os medicamentos antirretrovirais potentes, muito eficazes para HIV/Aids, o SUS assumiu a compra e distribuição a quem necessitasse desses remédios caríssimos, tanto pobres como ricos.

Os transplantes de órgãos por doadores mortos implicam captação sempre realizada por hospitais conveniados ao SUS, o que torna os órgãos a serem transplantados um bem coletivo. O SUS então organizou um sistema não somente de captação como de distribuição, com fila única e critérios técnicos que até hoje são utilizados por pobres e ricos.

As campanhas de vacinação contra varíola, poliomielite e sarampo, o programa HIV/Aids e o de transplantes foram momentos onde a sociedade brasileira fincou marcos civilizatórios importantes, consagrando o princípio básico do SUS —o de atender ao cidadão, independentemente de qualquer critério de classificação socioeconômica.

Essas ações exitosas ocorreram antes e depois da formalização do SUS. E, pasmem, implementadas tanto no regime constitucional de 1946, na ditadura militar de 1964 e no regime democrático atual. Assim, nada mais na contramão da história do que a proposta apresentada de venda de vacinas para a Covid-19 em plena pandemia.

Ela não é somente imoral, mas também equivocada. Induz a uma ilusão: a de que uma pessoa, se imunizada para a Covid-19, estaria protegida. Erro crasso e grave: a proteção individual virá somente quando cobertura vacinal ampla alcançar toda a população, pobres ou ricos.

A ideia é tão absurda que se tornou excêntrica aos olhos da comunidade internacional: Suíça e EUA, países ricos que não possuem sistema público de saúde, aplicam hoje a vacina gratuitamente na sua população.

Assumir a proposta de vacina paga em plena pandemia colide com todos os ideais civilizatórios no mundo e a tradição sanitária do Brasil. Equivale a um retrocesso aos tempos do afundamento do Titanic. Como se, em 2021, os navios cruzeiros passassem a cobrar por botes salva-vidas!

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