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José Augusto Garcia de Sousa

Desgosto profundo

Confraternização de jogadores do Flamengo com Bolsonaro envergonha a 'nação'

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José Augusto Garcia de Sousa

Defensor público no Rio de Janeiro, é doutor em direito e professor-adjunto de direito processual na UERJ

Eu teria um desgosto profundo
Se faltasse o Flamengo no mundo

Hino do Clube de Regatas do Flamengo

Eu devia ter cinco ou seis anos. Final da década de 1960. Morávamos em um prédio pequeno, e todas as famílias se conheciam. No terceiro e último andar havia um senhor idoso (talvez muito mais novo do que eu atualmente) que gostava de mim e sabia da minha paixão precoce pelo Flamengo. Ele torcia para o América, o que na época não era uma excentricidade tão grande.

Certo dia, veio-me com proposta absolutamente perturbadora: se eu trocasse de time, ele me daria uma reluzente moeda, algo como a moeda de R$ 1 dos dias atuais, o que, aos meus olhos inocentes, parecia valer muito. Relutei um bocado, mas a tentação falou mais alto: a carne é fraca, não importa a idade. Por um ou dois dias, virei América. É claro que não durou muito tempo. Apesar do descumprimento do trato, não devolvi a moeda. Uma conduta duplamente corrupta, reconheço, mas eu era inimputável e o vizinho do terceiro andar não cobrou de volta a moedinha.

Da esq para a dir: Márcio Tannure, médico do Flamengo, Jair Bolsonaro, Rodolfo Landim, presidente do clube, e Aleksander Santos, diretor de relações institucionais
O presidente Jair Bolsonaro se reúne com representantes do Flamengo - Márcio Tannure - 19.mai.20/Instagram

Como acontece com muita gente, minha história de vida está pontilhada de vermelho e preto. São cores inefáveis que, combinadas, mexem e remexem com estruturas profundas. Remetem à infância, à juventude, à vida adulta. Uma vida a essa altura quase sexagenária —que sempre contou com tal referência, firme e inquestionável.

Vi jogos inesquecíveis. Espremido entre 154 mil torcedores, estava na arquibancada do velho Maracanã quando ganhamos o nosso primeiro Brasileiro, em 1980, com Nunes —o artilheiro das decisões—marcando o gol da vitória no finalzinho do jogo. Também estava lá, com meu filho mais velho, na conquista do Brasileiro de 2009, gol do excepcional Ronaldo Angelim, contra um Grêmio não muito disposto a atrapalhar (para não ajudar o Internacional, seu grande rival, que disputava o título com o Flamengo). Como esquecer, ainda, da saborosíssima vitória sobre o Vasco de Eurico Miranda com aquele golaço de falta do Petkovic? Eu estava lá (era um jogo, não me recordo o motivo, que começou estranhamente às 15h).

Por outro lado, houve também derrotas terríveis, como a que sofremos para o América do México, protagonizada pelo “carrasco” Cabañas. Além de times pavorosos, que só por milagre não nos levaram à funesta segunda divisão.

Mas por que estou usando a primeira pessoal do plural? Decerto por fazer parte da chamada “nação rubro-negra”. Uma “nação” que abraça e envolve a sua própria família. Meu filho e minha filha foram incorporados a essa família maior, e em torno do vermelho e preto compartilhamos momentos de vida magníficos.

A fidelidade a cores tão cálidas e venturosas não deveria ser um problema. Pode-se trocar de esposa (esposo), mas nunca de time. É por óbvio uma piada, mas, nós, torcedores, acreditamos piamente nisso.

Nada parece resistir, porém, à impressionante força exterminadora do atual governo federal. Para um governo que contribui tão intensamente para a destruição de vidas e florestas, desmanchar uma paixão clubística é café pequeno (frase que talvez não passe incólume ao escrupuloso crivo do dr. André Mendonça, candidato a ministro do Supremo e emérito cultor da Lei de Segurança Nacional).

São conhecidos os degradantes episódios de bajulação da atual diretoria do Flamengo ao governo Bolsonaro. No momento em que há brasileiros morrendo por falta de oxigênio, produziu-se um novo episódio, não menos deprimente do que os anteriores. Um treino do Flamengo em Brasília contou com a visita do presidente e auxiliares, todos evidentemente sem máscara.

Especialmente chocante é o assanhamento explícito de alguns ídolos da torcida —dentre eles, jogadores experientes— quando o presidente se aproxima e começa a conversar. Vale registrar que ao menos um jogador não quis, aparentemente, participar da animada confabulação. Seu nome merece ser destacado: Gerson.

“Flamengo até morrer eu sou”? “Flamengo sempre eu hei de ser”? A partir das imagens que recebi, dei-me conta de que talvez não seja bem assim. De uns tempos para cá, a primeira pessoa do plural não está se justificando mais. Não pertenço, decididamente, a uma “nação” cujos “embaixadores” não se constrangem em trocar risos parvos com um governante adepto da tortura e contrário à vacina. Ao menos temporariamente, é melhor suspender a longa parceria.

Espero que eu possa voltar desse exílio com brevidade. Enquanto isso, não parece má ideia adimplir finalmente, com algumas décadas de atraso, o trato que firmei com o saudoso vizinho do terceiro andar. Torcendo pelo simpático e inofensivo América, alguma vergonha dentro do campo poderei eventualmente lamentar. Mas fora das quatro linhas as vergonhas são bem piores.

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