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Diogo R. Coutinho, Octávio Luiz Motta Ferraz e Conrado Hübner Mendes

Fila única para a vacina

Num contexto de escassez, imunização privada competiria com a pública

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Diogo R. Coutinho

Professor da Faculdade de Direito da USP

Octávio Luiz Motta Ferraz

Professor de direito público e codiretor do Transnational Law Institute - King’s College London

Conrado Hübner Mendes

Professor de direito constitucional da USP e colunista da Folha

Os argumentos a favor da vacinação privada no Brasil podem soar bastante plausíveis à primeira vista. Diante de um governo federal omisso e incompetente, parece irracional e até mesmo injusto que se proíba a oferta de vacinas pelo setor privado.

Quem pode pagar aliviaria o SUS e aumentaria o número de vacinados na população. Um cenário em que aparentemente ninguém perderia. Mas a questão não é tão simples, por diversas razões que se entrelaçam.

Em primeiro lugar, porque vacinas não são bens médicos de consumo e benefício individual como, por exemplo, uma operação de cataratas ou a colocação de uma prótese. Vacinas só funcionam com a imunização coletiva, o que demanda inoculação de um número enorme de pessoas (entre 60% e 95% da população, a depender da eficácia da vacina e de outros fatores, segundo a Organização Mundial da Saúde).

Ninguém está imune até que a comunidade esteja imune. Nem mesmo os afortunados que conseguem garantir sua dose antes no sistema privado —na melhor das hipóteses, algo em torno de 25% a 30% de brasileiros com plano de saúde. Se o vírus não é eliminado, pode infectar até mesmo os já vacinados (lembre-se de que nenhuma vacina tem 100% de eficácia) e sofrer mutações que o tornem ainda mais pernicioso, como já está ocorrendo.

Mas a vacinação de um quarto da população, se tanto, já não seria uma enorme ajuda? Não diminuiria o ônus do Estado?

Não necessariamente. Num contexto de escassez de doses de vacina como o atual, a vacinação privada inevitavelmente competiria com a pública. Aumentaria, não diminuiria, o ônus do Estado. Mesmo que empresas privadas comprem apenas lotes de laboratórios que não estejam em negociação com o governo no presente momento, os riscos não desaparecem. O sistema público precisará ampliar seu rol de fornecedores para atender a toda a população. Se estes já estiverem presos a contratos com clínicas privadas, as opções diminuem e os custos aumentam. A hipótese de o Estado não estar interessado na vacina A ou B, liberando-as para o mercado, vira profecia autorrealizável.

A esses problemas de competição predatória entre sistema público e privado no meio de uma emergência sanitária somam-se outros, de natureza ética e estratégica. A retórica de que a vacinação privada não implicaria “furar a fila” —mas apenas criar uma “outra fila”, ou que se opor à vacinação privada não passa de “purismo ideológico”— só faz sentido numa sociedade em que noções de igualdade e solidariedade abandonaram o vocabulário moral. Quando se trata de bens coletivos como vacina, transplante de órgãos ou segurança pública, somente a fila única passa no teste da decência.

Esse consenso alcança até mesmo países liberais sem sistemas universais de saúde, como os EUA.
A suposta garantia de que os mesmos critérios de prioridade da política pública seriam seguidos pelas clínicas privadas pode seduzir, mas simplesmente confunde. O poder aquisitivo segue sendo o critério de acesso. Além disso, facultar à elite econômica o direito de pular fora (“opt-out”) do sistema no meio de uma pandemia não é apenas imoral, mas também estrategicamente perigoso. Anestesia sua imensa capacidade de pressão sobre o governo e pode gerar a falsa sensação de proteção nesses grupos, adicionando ainda mais combustível à pandemia.

Teoricamente não seria impossível imaginar um papel subsidiário, justo e eficiente para clínicas privadas num programa de imunização. Se o sistema público estivesse abastecido e avançado em um plano de vacinação bem desenhado, e tivesse capacidade de formular e implementar uma regulação robusta —um cronograma para o início da comercialização privada, parâmetros para eventual requisição administrativa pelo SUS e regras de prevenção de abusos, entre outras medidas—, a vacinação privada poderia eventualmente contribuir para o esforço público. Não é o caso. Por mais paradoxal que pareça, a omissão e incompetência do governo tornam a participação de clínicas privadas neste momento da crise sanitária menos, e não mais, justificada.

A melhor opção ainda é mobilizar com urgência toda a estrutura e experiência acumuladas do sistema público num programa maciço de vacinação, acessível a todos em condições de igualdade. Muitos estados e municípios já estão nesse caminho, e o sistema federal, a contragosto, está sendo empurrado na mesma direção. Não é hora de arriscar esse esforço com a autorização —apressada, sem salvaguardas regulatórias, eticamente reprovável e de eficácia dúbia— da vacinação privada.

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