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Andréa Zhouri

A efetivação do 'Big Business Brumadinho'

Com quase R$ 20 bilhões a menos, acordo é jogada política e de negócios

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Andréa Zhouri

Professora titular do Departamento de Antropologia e Arqueologia da UFMG e coordenadora do Gesta-UFMG (Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais)

Os desastres causados pela mineração em Minas Gerais apresentam características que os definem como processos de grande magnitude e longa duração, compreendendo desdobramentos socioambientais complexos que dificultam soluções simultaneamente objetivas, céleres e justas. Um aspecto menos debatido, contudo, diz respeito ao mundo de negócios e oportunidades que eles inauguram.

Esse tema assume relevância atual frente ao acordo celebrado entre o governo de Minas e a empresa Vale a propósito do desastre de Brumadinho. Adjetivado como bilionário e melhor acordo da América Latina, o que ele consagra é o “grande negócio Brumadinho”: bom para a política e melhor para a empresa.

O governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), assina acordo com a Vale para reparação dos danos provocados pela tragédia de Brumadinho - Fernanda Canofre - 4.fev.21/Folhapress

Elaborado de forma sigilosa, sem participação de atingidos, o acordo foi fechado em R$ 37,68 bilhões de reais (R$ 26 bilhões, descontados os gastos já havidos) a partir de um total inicial de R$ 56 bilhões.

A Vale economiza, portanto, cerca de R$ 19 bilhões, valor próximo ao lucro líquido obtido pela empresa no terceiro trimestre de 2020. Além de manter o controle do processo de reparação, ao resguardar a execução de programas de reparação socioambiental, a empresa viu ainda suas ações subirem 4,3% no dia do acordo. Uma imagem de quitação de compromissos gerados com o desastre é passada, assegurando-lhe confiabilidade perante o mercado.

Para o governo de Minas, o acordo representa influxo para o caixa do estado e oportunidade para realizar obras de infraestrutura, estratégia preferencial de realização da política na prática. Entre as obras, destaca-se a construção do Rodoanel, projeto antigo e alvo de questionamentos por incidir sobre duas unidades de conservação e distritos que vivem do turismo histórico e ecológico, podendo comprometer o manancial hídrico que abastece a capital mineira. O projeto é também de interesse das mineradoras por possibilitar o transporte do minério a partir da região.

O acordo se apresenta, pois, como grande jogada política e de negócios. Embora não extinga as ações indenizatórias cíveis e criminais ajuizadas contra a empresa, não restam dúvidas sobre o efeito que produzirá nessas ações, sobretudo no caso das vítimas, deixadas ao enfrentamento individualizado contra a gigante Vale. O acordo naturaliza a desigualdade que impera nas contendas judiciais, onde apenas agentes detentores de capital econômico, político e simbólico conseguem acesso ao direito.

A quantia de R$ 4,4 bilhões destinada ao programa de transferência de renda (que substituirá o auxílio financeiro emergencial às vitimas) é ainda muito inferior à estimativa apresentada pelas assessorias técnicas dos atingidos (cerca de R$ 9,4 bilhões). Ao celebrar os valores acordados, o governador Romeu Zema (Novo) desconsidera que a reparação implica direito à retomada da vida em condições equivalentes ou melhores do que antes do desastre.

No contexto de Mariana, ​Zema já havia sugerido uma suposta falta de objetividade no processo de reparação do desastre. Na sua visão, uma forma eficiente de reparação deveria partir de um padrão básico comum, considerando a humildade dos povoados. Um cálculo do tipo “arroz, feijão, bife e salada” para alimentação e “uma casa de 200 m2” para moradia, como publicado nesta Folha (“Constituição tornou o Brasil um país um tanto quanto ingovernável, diz Zema”; 11.nov.19).

Ora, o filósofo Jacques Rancière apontaria a simplicidade do raciocínio aritmético à guisa de promoção da justiça distributiva. O governante desconsidera a variedade da geometria das partes representada pela diversidade das formas de ser e viver territorializadas na sociedade, bem como as diferenças materiais que efetivamente existem mesmo em humildes vilarejos rurais.

Ao interceptar o caminho da reparação às vítimas em Brumadinho, o interesse político se casa ao financeiro e revela a faceta cruel da necropolítica (que delibera sobre quais vidas serão sacrificadas) associada ao necrocapitalismo (que define quais vidas serão mais lucrativas) no “Big Business Brumadinho”.

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