Um deputado opositor do governo Jair Bolsonaro sobe à tribuna do Parlamento e, de lá, estimula seus apoiadores a matá-lo. Estará protegido pela imunidade parlamentar? Poderá, sem qualquer consequência, incitar que matem o presidente da República? Se você acredita que essa hipotética fala seria criminosa, concordamos que a imunidade parlamentar não é absoluta.
A imunidade parlamentar existe para proteger o Parlamento —não o parlamentar—, a República e o próprio Estado democrático de Direito. Para que congressistas eleitos possam defender suas ideias sem retaliações, ainda que impopulares. Essa garantia não pode ser escudo para a prática de atos que visem atacar a própria existência de um Estado democrático.
Também parece plausível a inafiançabilidade dos crimes, eis que a Constituição é expressa ao afirmar serem inafiançáveis os crimes “contra a ordem constitucional e o Estado democrático” praticados por grupos armados. O deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) não apenas faz parte de grupos armados como ameaça publicamente descarregar sua arma em opositores do governo.
E flagrante também havia. Poucas horas haviam passado desde a publicação do vídeo e, tivesse o fundamento da prisão em flagrante sido esse (o curto espaço de tempo entre fato e decisão), certamente não haveria toda essa celeuma. Mas o ministro Alexandre de Moraes fundamentou o flagrante na existência de crime permanente, em razão de o vídeo permanecer disponível nas redes sociais. Assim, o flagrante seria possível a qualquer momento.
As leis penais não imaginaram o mundo atual. Com algum dinheiro, patrocina-se um vídeo, um post, um tuíte. A ação se dá no início, mediante programação do algoritmo e, automaticamente, as consequências são repetidas, visualizadas e estimuladas por “robôs” previamente programados. Se computadores não cometem crimes, aquele que programa algo e que, dolosamente, estimula a propagação de um discurso criminoso de forma permanente comete —perdão pela redundância— crime permanente. Não se trata de o conteúdo estar permanentemente disponível, mas sim da intenção do agente em permanentemente divulgar o conteúdo criminoso.
Não se pode justificar um flagrante por manifestação ou vídeo antigos que meramente se mantenham disponíveis. Mas o flagrante deve ser possível quando a intenção for a manutenção do conteúdo em evidência, por meio de estratégia ativa de divulgação. O entendimento do ministro do Supremo é preocupante, mas não absurdo. Merece reflexão, e não imediata refutação.
Se flagrante havia, por qualquer fundamento, não era necessária decisão judicial. O Código de Processo Penal estabelece que qualquer do povo poderá prender quem se encontre em flagrante delito, sem decisão judicial. Mas quem se arriscaria a tolher a liberdade de um parlamentar sabidamente agressivo, com porte de arma e que vibra com a morte? Legalmente, ordem judicial era desnecessária: pragmaticamente, era imprescindível.
Por fim, para quem achou a decisão do Supremo preocupante: o todo é preocupante, e a decisão do STF faz parte do todo. Com um procurador-geral da República que sequer investiga um presidente que diariamente comete crimes comuns em rede nacional, e com uma Câmara que cogita Bia Kicis (PSL-DF) na Comissão de Constituição e Justiça, seria autofágico que o Supremo se omitisse.
Os limites já foram extrapolados por tantos, inclusive sob a omissão do próprio Supremo. Voltar atrás tardiamente é melhor do que não voltar: Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva, acredito, concordariam.
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