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Lauro Gonzalez e Marcelo Araujo

Digitalização e o perigo do retrocesso no Bolsa Família

Proposta de autocadastramento ignora limitações de acesso à internet na baixa renda

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Lauro Gonzalez

Professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da FGV e coordenador do Centro de Estudos em Microfinanças e Inclusão Financeira da mesma instituição

Marcelo Araujo

Pesquisador do Centro de Estudos de Microfinanças e Inclusão Financeira da FGV

Ao longo do segundo semestre de 2020, mesmo pressionado pelas prováveis consequências do fim abrupto do auxílio emergencial, o governo deu o famoso giro de 360 graus em relação à implementação de um novo programa de transferência de renda.

Foram idas e vindas de anúncios e intenções de mudança sem nenhuma medida concreta. Talvez “jogar parado” tenha sido uma estratégia para não adotar nenhuma mudança, o que seria muito negativo diante da evidência de que o formato atual do Bolsa Família é insuficiente. Os dados mostram que a maior parte (38 milhões) das 68 milhões de pessoas que receberam o auxílio emergencial não é beneficiária de nenhum outro programa de transferências de renda. Trata-se do enorme contingente de invisíveis, para usar as palavras do ministro Paulo Guedes, da Economia.

Janeiro de 2021 já chegou ao fim em meio à segunda onda da pandemia e com os efeitos negativos do fim do auxílio se materializando. Além disso, as novidades de Brasília não são boas. Reportagem mostra que, para reduzir custos com as políticas de proteção social, o governo federal pretende alterar o papel dos municípios no cadastramento de novos beneficiários de programas sociais como o Bolsa Família. Provavelmente inspirados pela forma de pagamento do auxílio emergencial, fala-se em priorizar o autocadastramento de beneficiários no CadÚnico (registro de famílias pobres e extremamente pobres) através de um aplicativo para celular.

No atual desenho, a inclusão das famílias no CadÚnico ocorre através de servidores públicos treinados, que atuam diretamente em contato com a população de menor renda, tanto circulando em regiões pobres como atendendo em centros localizados nas proximidades dessas regiões, caso do Cras (Centros de Referência de Assistência Social)

A mudança para um aplicativo não parece adequada por diversas razões. Primeiramente, ignora o fato de que a implementação é um processo complexo, cujos resultados dependem, entre outras coisas, das interações cotidianas entre agentes públicos e cidadãos. Havendo proximidade entre os envolvidos, tais interações abrem espaço para que as políticas públicas tenham maior conexão com a realidade local. Considerando a necessidade de coletar, monitorar e atualizar informações sobre um público vulnerável, marcado pelo analfabetismo funcional, é duvidoso imaginar que um aplicativo substitua esses agentes.

Segundo, a proposta de autocadastramento assume implicitamente a universalidade do acesso à internet, inclusive entre cidadãos de menor poder econômico, provavelmente em virtude da ampla disponibilidade de celulares. Entretanto, dados mais recentes da pesquisa TIC Domicílios mostram que cerca de um em cada quatro brasileiros ainda não utiliza a internet. São aproximadamente 47 milhões de pessoas, a maior parte das classes D e E e residentes em áreas rurais. Ou seja, justamente aqueles em condição de maior vulnerabilidade social e que são públicos-alvos de políticas de transferência de renda.

Terceiro, é preciso distinguir acesso e uso. Mesmo entre os cidadãos de menor poder econômico que possuem acesso à internet, há barreiras que dificultam seu uso. Os dados da pesquisa TIC Domicílios apontam que 99% dos internautas das classes D e E se conectam por meio de celulares e que para 85% desses usuários esse dispositivo móvel é o único meio de conexão à internet.

Uma barreira relevante está ligada à capacidade técnica do celular. Devido aos custos, a população de menor renda tipicamente utiliza dispositivos móveis de menor capacidade tecnológica e funcionalidades limitadas. Outras barreiras que afetam negativamente o uso são a qualidade da infraestrutura de conexão e o tamanho reduzido das telas de celulares; ocasionando limitações nas funcionalidades de digitação.

Os dados corroboram os efeitos negativos das barreiras mencionadas. Entre os internautas das classes D e E, apenas 48% utilizaram serviços de governo eletrônico; 16% realizaram a compra de produtos ou serviços pela internet (comércio eletrônico); 9% realizaram transações financeiras digitais; 30% realizaram atividades e pesquisas escolares; e apenas 6% usaram a internet para realizar cursos a distância. Deve-se ressaltar que a pandemia ampliou o uso da internet, especialmente no comércio eletrônico, porém ainda existe um fosso separando a população de menor renda da parcela mais abastada.

Vale lembrar que a saga enfrentada por milhões de pessoas para o recebimento do auxílio emergencial, incluindo filas e aglomerações em frente às agências da Caixa, justamente o que não se desejava em meio à pandemia, estão relacionadas aos inúmeros obstáculos surgidos no acesso e uso do programa disponibilizado pelo banco público.

A exclusão digital é um espelho da histórica desigualdade socioeconômica no Brasil. Sendo assim, as mudanças propostas no Bolsa Família devem ser debatidas e cuidadosamente analisadas por especialistas, afastando a possibilidade de retrocesso.

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