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Flávia Biroli

Morte e violência como debate

Energia que Bolsonaro exibe com armas não se vê na busca por vacinas

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Flávia Biroli

Professora do Instituto de Ciência Política (UnB) e ex-presidente da Associação Brasileira de Ciência Política (2018-20); é autora, entre outros, de “Gênero e Desigualdades: Limites da Democracia no Brasil” (ed. Boitempo)

Morte e violência são parte da conduta e da agenda de Jair Bolsonaro. Sua indiferença às vidas perdidas para a pandemia de Covid-19, seu combate à proteção ambiental e seus esforços para promover o acesso da população a armas compõem um só projeto. Trata-se da promoção lúcida e consciente da morte por quem seria responsável por garantir o direito da população à vida e às condições ambientais adequadas para o futuro.

Em um país assolado pela violência e organizado por desigualdades, Bolsonaro é firme em sua pedagogia. Muito antes de chegar à Presidência, usou sua carreira para promover a ideia de que algumas vidas não merecem pranto nem luto. E que agentes públicos que agem violentamente devem ser protegidos. Suas mensagens e ações diferenciam claramente aqueles a quem o Estado deve proteção e aqueles a quem trata com desprezo e bala.

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O presidente Jair Bolsonaro faz mira com um fuzil de assalto em foto postada em suas redes sociais - Polícia de Israel

Enquanto a pandemia segue forte e os brasileiros amargam a suspensão do Carnaval, o presidente trabalha para ampliar o acesso a armamentos —com energia que nunca demonstrou na busca pelas vacinas. Quatro decretos publicados na sexta-feira (12) mostram que não é com a vida que o presidente se preocupa. Os decretos aumentam o número de armas de fogo que podem ser compradas por cidadãos comuns; para algumas categorias, como policiais e agentes carcerários, ampliam o acesso a armas de uso restrito. Também reduzem o controle do Exército sobre produtos com grande potencial de morte.

O que pretende ​Bolsonaro? Há duas hipóteses. A primeira é que quer armar quem o apoia, garantindo a capacidade de coerção e exercício violento da força em seu favor numa eventual ruptura autoritária. A segunda é que planeja facilitar o acesso de paramilitares, milícias e outros grupos criminosos a armas. Isso aumentaria a capacidade bélica de grupos não estatais e seu domínio sobre territórios. Nas duas hipóteses, a desregulamentação favorece o trânsito entre o legal e o ilegal, entre interesses políticos e interesses econômicos.

Bolsonaro é a expressão da incivilidade. Sua carreira é umbilicalmente ligada à violência, e ele a utiliza para reforçar a ideia de que somos uma sociedade na qual soluções não violentas não são possíveis. Cada um deve ser capaz de reagir porque estamos rodeados de ameaças. Aciona, assim, uma política que corrói as bases legais do exercício de poder, mas também a das relações sociais de cooperação e solidariedade.

O recurso à violência não é algo original. Tem sido fundamental em regimes autoritários e não é estranho às democracias. Pode ser evidente, como no uso de armas contra manifestantes ou “suspeitos”, e estrutural, como nas formas cotidianas de discriminação e precarização que tornam alguns mais vulneráveis que outros. As desigualdades de classe, o racismo, o machismo e a homofobia servem para justificar de antemão a agressão e a violação.

Para quem tem compromisso com uma sociedade democrática, é fundamental compreender que a violência pode ser usada estrategicamente por políticos autoritários. No Brasil, a narrativa de que é preciso jogar duro com o crime aumenta a tolerância a violações. Para os setores mais vulneráveis da população, elas são parte do cotidiano. Mas quem se sente relativamente protegido precisa entender que, nesse passo, seremos uma sociedade cada vez mais violenta, mais insegura e fraturada. Seremos uma população mais armada e amedrontada, vivendo em espaços nos quais circulam seguranças privados portando armamentos pesados para nos proteger de nós mesmos. Seguiremos reafirmando que essa é a convivência possível, que não temos futuro fora das espirais de violência e morte?

A política da extrema direita no Brasil reforça uma dinâmica que, sem dúvida, preexiste a ela. Recorrendo à expressão de Frantz Fanon, ela amplia a zona do “não ser”. Coloca em risco o que temos de mais precioso: vidas, laços entre as pessoas e recursos ambientais para que sejam possíveis. A cada pronunciamento, a cada decreto, a cada gestão orçamentária que despreza a vida, a política é enfraquecida em seu potencial de construir um futuro comum na pluralidade, na diferença e na interdependência, que são características das sociedades humanas.

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