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Luiz Guilherme Piva

Pandemia e infelicidade

Há um enorme encadeamento de fatores a estudar, entender e enfrentar

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Luiz Guilherme Piva

Economista, mestre (UFMG) e doutor (USP) em ciência política e autor de ‘Ladrilhadores e Semeadores’ (Editora 34) e ‘A Miséria da Economia e da Política’ (Manole)

No mundo inteiro a pandemia tornou iguais as famílias infelizes, castigadas pelos males conjugados da doença, da crise econômica e das ações públicas. Já as felizes o são por motivos diferentes: ou por não terem sido atingidas, ou por desconhecerem ou desconsiderarem a gravidade da doença e da crise, ou por acreditarem integralmente nas ações públicas.

A pandemia não é resultado do acaso nem da fatalidade. Norberto Bobbio disse que “o acaso explica muito pouco, a fatalidade explica demais” e os descarta como fatores de compreensão de fenômenos. Mas, em outro contexto, afirma (em paráfrase) que “a felicidade é cega, mas a desgraça enxerga muito bem” —ou seja, aquela ocorreria por sorte e esta, por perversidade.

Mudou bastante ao longo do tempo, na filosofia, a noção de felicidade, oscilando entre os pares de ideias de desprendimento e de usufruto, de virtude moral e de conquista material, de direito e de privilégio, de conhecimento e de ignorância. Mas todas elas abrigam, no fundo, a noção de saúde física e bem-estar psicológico —apesar de, no limite, ser possível pensar em especificidades distintas. No quadro atual de pandemia tão abrangente, longa e grave, é forte a sensação global de grande desgraça, com crescimento da angústia e da dor frente às ameaças à vida e à condição socioeconômica e diante da constatação de que muitas ações públicas não seguem rigorosamente os procedimentos prescritos pela ciência.

Mas há, em todos os lugares, os felizes em meio à pandemia. Fazem parte do segmento populacional não atingido em sua saúde, e muitos não a temem ou nem sequer nela acreditam. Outros dispõem de condições econômicas tão boas que não lhes tocam nem importam o perigo social e econômico nem as ações públicas inadequadas. O fato é que conseguem preservar sua felicidade por usufruto, ou por conquista material, ou por privilégio, ou por ignorância —os segundos termos dos pares de conceitos filosóficos acima.

Poderia parecer que é exclusivamente problema desses segmentos. Mas não é. Primeiro, porque sua percepção está errada. A pandemia não é o que George Berkeley chamava de “imaterialismo” (Borges o resume assim, aproximadamente: “o sabor não está na maçã nem na boca, mas no encontro da fruta com o palato”): trata-se de realidade concreta; e experimentar a felicidade por ignorância, neste caso, é pôr um sentimento humano a serviço da degradação do conhecimento humano. Segundo, porque sua atitude coloca em risco a vida, a dignidade econômica e a felicidade de outros.

Cabe às ações públicas agir da melhor maneira no enfrentamento da pandemia. A vida, por óbvio, é o maior dos pressupostos da felicidade. E é impossível conceber, para quem é responsável pelas ações públicas, atribuição mais importante do que preservar a vida.

Há um enorme encadeamento de fatores a estudar, entender e enfrentar na pandemia e suas consequências. Repita-se: o acaso e a fatalidade não as explicam. Mas são justamente esses os termos utilizados como argumentos pelos que diminuem ou ignoram a tragédia e se sentem bem com isso.

Talvez seja o caso de a filosofia incorporar tais atitudes como noções novas para conceituar a felicidade humana —ao menos para aqueles seres que, por sorte ou perversidade, têm sido cegos à desgraça.

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