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Fábio Bibancos

Socorro, eu trabalho na boca!

Prefeito Bruno Covas, seria demais pedir prioridade na 'xepa' da vacina?

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Fábio Bibancos

Dentista, é presidente do Instituto Bibancos de Odontologia e da ONG Turma do Bem

Entre a falta de logística e campanhas negacionistas, o brasileiro permanece com medo da pandemia de Covid-19 e lida diariamente com dezenas de dúvidas. A principal delas: quando serei vacinado?

A incerteza também recai sobre uma classe de profissionais de saúde inserida já na primeira fase do plano de imunização: os dentistas. Você pode se perguntar: “Mas dentista é profissional da saúde? Por que ele deve tomar a vacina antes de mim?”.

O dentista Fábio Bibancos, presidente da ONG Turma do Bem - Keiny Andrade - 6.nov.17/Folhapress

Essas questões são sintomáticas do descaso dos setores públicos, e inclusive da própria sociedade, com a saúde bucal. E é imprescindível alertar que as políticas públicas efetivas na área de odontologia nunca existiram.

Obviamente, profissionais da linha de frente no combate à pandemia devem ser priorizados, assim como idosos e pessoas com comorbidades. Isso é indiscutível.

No entanto, ao avaliar as condições de trabalho às quais dentistas estão submetidos, fica explícito o enorme risco de contaminação e nível de exposição desses trabalhadores. Ilustro em três fatores: o contato direto com a boca dos pacientes, a produção constante de aerossóis nos consultórios e a impossibilidade de confirmação se o paciente está ou não contaminado.

Com poucas doses da vacina e cada estado e cidade definindo de maneira independente como será sua vacinação, vemos alguns prefeitos enxergando o óbvio: profissionais da saúde que estão em contato direto com a boca de pacientes sem diagnóstico definido precisam ser priorizados. No estado de São Paulo, esse foi o caso de municípios como Pedreira, Campinas, Bauru, Marília, São Caetano do Sul, Diadema e Guarulhos. Nessas e em outras cidades, a maioria ou todos os dentistas já foram vacinados.

Não é o mesmo caso da capital paulista, que, apesar de ter incluído dentistas no grupo prioritário após infindáveis pedidos do Conselho Regional de Odontologia de São Paulo (Crosp) e apelos nas redes sociais, ainda mantém seus pouco mais de 32 mil dentistas brigando por um lugar na “xepa”.

A “xepa” não é nenhuma dessas provas de reality shows, apesar de já termos presenciado alguns barracos por ali. Ela funciona da seguinte forma: após aberto um frasco de Coronavac, a vacina deve ser aplicada em até oito horas. Para evitar desperdícios, a Secretaria de Saúde permitiu a distribuição de sobras de doses nos frascos. O dentista que deseja se vacinar realiza um cadastro nos postos de saúde e, após o fim do expediente de vacinação daquele dia, “briga” por essas doses “abertas” nas unidades de saúde. Mas não só eles —e aqui entra um relato pessoal.

Fiz esse processo e me deparei com veterinários e biomédicas (também profissionais de saúde, mas definitivamente com riscos de contaminação e níveis de exposição bastante distintos se comparados aos dentistas). Na primeira vez, saí de lá sem o imunizante, ao contrário de um jovem veterinário. Na segunda, vi uma dentista “ganhar a vacina no grito”, em uma situação lamentável ocasionada pela evidente falta de planejamento no Plano Nacional de Imunização.

Agora, vacinado pela “xepa”, após quatro tentativas, persisto em não me calar enquanto amigos de profissão seguem desprotegidos e, por consequência, colocando também familiares em risco.

Prefeito Bruno Covas (PSDB), seria demais pedir “prioridade” na “xepa”? Os 32 mil dentistas, se vacinados, poderão parar de brincar com a roleta-russa que é cuidar da saúde bucal da população em um tsunami de aerossóis. Essa é a única salvação para as constantes mortes de dentistas, pacientes, funcionários e suas respectivas famílias.

Peço em nome de toda a classe por um olhar atento à questão da saúde bucal no Brasil e à importância da classe odontológica, pelo menos neste cenário crítico que enfrentamos.

Apesar de indignados, os dentistas não se surpreendem com o descaso de imprensa, órgãos públicos e sociedade. No Brasil, sorrir sempre foi privilégio de poucos, e aqueles que podem dar mais dignidade ao sorriso sempre foram esquecidos.

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