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Carlos Parada

Vacinas, patentes e o bem comum

Argumentos como 'defesa da propriedade intelectual' não se sustentam diante da catástrofe

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Carlos Parada

Psiquiatra e historiador em ciências, é autor de "Toucher le cerveau, changer l’esprit" (PUF)

Diante do apocalipse da Covid-19, as vacinas são sem dúvida uma esperança. Mas enquanto não encontrarmos um tratamento, essa pandemia pode durar muito tempo. Assim sendo, novas vacinas, novos testes e medicamentos serão necessários. Hoje, alguns poucos gigantes da indústria farmacêutica dominam a fabricação, decidem o preço e o destino dos imunizantes. Essa configuração torna o acesso demorado e dispendioso.

Deixar a produção e comercialização de remédios essenciais na mão (ou na carteira) de algumas indústrias não é apenas um problema de mercado, é uma condição perigosa e injusta.

Perigosa pois, enquanto não vacinarmos parte significativa da população mundial, o vírus continuará a matar e a mutar. Quanto mais tempo e quanto mais infectados, mais mortes e mais mutações aleatórias acontecerão. Imagine nossa reação se, um dia, uma mutação tornar a Covid letal para jovens e crianças. Por que esperar esse dia? Em nome de qual princípio maior aceitaríamos correr esse tipo de risco?

O monopólio de mercado e a consequente escassez de vacinas são geradores de injustiça. Além de favorecer os mais ricos e a especulação, a penúria banaliza a hierarquização de seres humanos entre idosos e jovens, trabalhadores e desempregados, pessoal da saúde contra professores, vacinados contra não vacinados etc. Para o coronavírus, somos todos iguais. Estamos todos no mesmo barco do dilúvio pandêmico.

Note-se que as patentes de vacinas ocidentais proveem de pequenas startups de biotecnologia subvencionadas por verbas estatais e aliadas a certas universidades. Em 2020, as grandes indústrias compraram essas patentes e financiaram os ensaios clínicos, com dinheiro público. Pelo pouco que se sabe, só a União Europeia e os EUA verteram cerca de 40 bilhões de euros a cinco indústrias ocidentais sob forma de auxílios e pré-encomendas. Aos preocupados com a "propriedade intelectual", pergunto: quanto desse dinheiro é revertido para os centros de pesquisa que desenvolvem tecnologia e qual o quinhão de benefícios dos fabricantes? Ninguém sabe, mas cada um imagina.

Normalmente, a patente de um remédio outorga 20 anos de exclusividade comercial antes de o medicamento passar ao domínio público, sob a forma de genérico. Essa prática convencional não corresponde à gravidade da situação sem precedentes que atravessamos. Todos sabemos que não poderemos pagar nem esperar 20 anos para beneficiar de cada nova patente antiCovid.

Esse sistema é opaco, injusto e insustentável.

Existem maneiras mais baratas e mais justas de garantirmos o bem comum. No princípio dos anos 1960, Albert Sabin simplesmente renunciou aos seus direitos de patente da vacina contra a poliomielite para que fosse distribuída a baixo custo no mundo inteiro.

Qualquer cidadão com menos de 60 anos deveria ser grato a Sabin pela erradicação dessa terrível doença. O importante é dar acesso livre à compra e ao uso das patentes, sem exclusividade, tanto a entidades públicas como privadas, e recompensando a pesquisa. É inclusive o que prevê a regra de "licença compulsória" da Organização Mundial do Comércio.

Recentemente, um pedido nesse sentido de quase cem países foi negado por países como EUA, União Europeia e, inexplicavelmente, Brasil. Liberar as patentes não é nenhuma revolução. Já fizemos isso no passado. Países como Índia e Brasil desafiaram a exclusividade e "quebraram" monopólios de patentes de diversos remédios vendidos por preços exorbitantes na luta contra a Aids. Resultado: milhares de vidas foram salvas e nenhum fabricante foi à falência.

A saúde é um bem comum, um direito de cada ser humano e um dever dos governantes. Doações e caridade internacional não bastarão. É preciso aumentar ao máximo e rapidamente a produção de vacinas no mundo inteiro para torná-las acessíveis a todos.

Sejamos humanos, sejamos pragmáticos. Argumentos como "defesa da propriedade intelectual" ou "regras do mercado" são pura ideologia especulativa, fora de contexto, e que não se sustentam diante da catástrofe mundial que se prolonga e nos assola. Não faltam alternativas; faltam convicção e coragem de agir pelo bem comum. Mas até quando?

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