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Paulo Lotufo

A extenuante tarefa de contabilizar mortes

Rigor nos métodos permite ações mais efetivas no controle da pandemia

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Paulo Lotufo

Epidemiologista e professor titular de clínica médica da Faculdade de Medicina da USP

Nesta sexta-feira (12) completa-se um ano da primeira vítima de Covid-19 no Brasil. Rosana Urbano, 57, era faxineira, morava com marido e filho em um conjunto habitacional em Cidade Tiradentes, no extremo leste de São Paulo. Ela foi internada no Hospital Municipal do Tatuapé no dia anterior. A sua mãe também estava hospitalizada e também morreria em 16 de março. O reconhecimento de sua morte como sendo a primeira no Brasil só ocorreu em junho. Até então, o primeiro caso fora registrado em 17 de março em um hospital privado da capital paulista.

Esse descompasso de informação não foi fortuito. Enquanto em hospitais privados os exames confirmatórios ficavam prontos em horas, o de Rosana, colhido no dia 11 de março, somente foi enviado ao laboratório em 17 de março —e o resultado acabou liberado só em 30 de abril.

Surge aí a primeira limitação para comparações de mortalidade em epidemiologia: as informações são socialmente determinadas pelo acesso ao sistema hospitalar e pela qualificação dessas unidades.

Assim, é possível concluir que a epidemia, por ter se iniciado nos bairros ricos de São Paulo, retardou as frentes de suporte nos bairros pobres.

A segunda limitação referente à mortalidade em uma epidemia são os critérios de definição da “causa básica”. Um assunto sempre complexo, da Organização Mundial da Saúde, para padronizar anualmente esses critérios. No caso da pandemia de Covid-19, há agora um código para casos confirmados e outros dois para casos suspeitos. Uma solução para essa dificuldade em se estabelecer a causa básica é a abordagem por excesso de mortes entre 2020 e a média dos anos anteriores.

O excesso da mortalidade geral mostrou diferenças importantes entre os estados. Até o final de dezembro, o excesso de mortes foi de 56% no Amazonas, 27% no Rio de Janeiro e 16% em São Paulo. Esse marcador é útil porque avalia o colapso do sistema hospitalar, por inteiro, quando atende a contento doenças não relacionadas à Covid-19.

A terceira limitação nessa avaliação são as taxas de mortalidade (razão entre número de mortes e a população), que somente são utilizadas depois de um tempo prolongado de instalação da pandemia. Porém, o problema maior é que, para servir como padrão de comparação, há a necessidade de se padronizar pela estrutura etária dos diversos locais, porque o risco de morrer guarda relação exponencial com a idade.

Utilizando-se a base do Sivep-Gripe, junto com as professoras Gulnar Mendonça e Beatriz Jardim, nós analisamos até 31 de dezembro de 2020 as taxas de mortalidade em duas cidades com proporção de pessoas com mais de 60 anos diferentes: Manaus, 8%, e Rio de Janeiro, 19%. A divisão do número de mortos por 100 mil habitantes foi a mesma: 253.

Como o Rio de Janeiro tem o dobro de idosos do que Manaus, nós equalizamos as populações das duas cidades como se ambas tivessem a mesma pirâmide populacional. Esse ajuste alterou a taxa de Manaus para 413 por 100 mil, e a do Rio de Janeiro para 196 por 100 mil. Isso reflete a proporção de mortes em menores de 60 anos: 32% em Manaus e 21% no Rio de Janeiro. Assim, o risco de morte pela Covid-19 em Manaus é o dobro do que no Rio de Janeiro —e não a mesmo, como poderia ser erroneamente expresso.

Durante toda a pandemia, os dados de mortalidade são fundamentais para monitorá-la. Para isso, no entanto, é necessário compreender esses ensinamentos básicos: a existência de viés de aferição, a dificuldade em se definir a causa básica de morte e, principalmente, comparações sempre com ajuste pela estrutura etária. Com frequência há reportagens apontando taxas maiores na Europa do que no Brasil, quando 22% dos europeus estão acima dos 60 anos, contra 13% dos brasileiros.

O passeio pelos números de mortalidade requer rigor de métodos, porque trazer a melhor informação permitirá ações mais efetivas para reduzir o sofrimento de todos —principalmente dos mais pobres, como no caso da família de Rosana Urbano, a nossa primeira vítima.

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