Descrição de chapéu
Cecilia Mello

Aos fatos com a lupa. A quem não interessa?

Projetos de lei no Congresso objetivam obstruir o célere acesso à ciência e à verdade

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Cecilia Mello

Advogada, é juíza federal aposentada do TRF3 (Tribunal Regional Federal da 3ª Região)

​Intensificam-se diariamente novos métodos de interação social na internet, com significativo poder de disseminação de opiniões, relatos, fatos, dados, fotos, mídias; em síntese, informações. O aprimoramento da tecnologia da informação e a diversificação de soluções digitais apontam para uma curva ascendente na utilização desse meio de comunicação.

A liberdade de manifestação do pensamento, um dos direitos mais caros da intimidade do indivíduo, externa a personalidade e compartilha o conhecimento. Atrela-se de maneira indissociável à divulgação de fatos e informações. Reflete a liberdade de imprensa. Em contrapartida, a nossa Constituição garante a todos o direito à informação, o direito de receber notícias e opiniões, seja pela imprensa, seja por outros meios.

Evidentemente que todos esses direitos encontram seus limites na licitude das práticas que envolvem e na garantia que a Constituição também confere a outros direitos e liberdades. Assim, entrelaçam-se direitos e limites, formando uma teia que, rompida, pode gerar consequências nas mais diversas áreas do direito: desde o direito de resposta e a responsabilidade civil em razão do dano causado até a responsabilização criminal.

O STF tem sólido posicionamento sobre o direito fundamental à liberdade de expressão (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF 130), onde o direito de crítica, componente essencial do Estado democrático de Direito, restou resguardado para a proteção da própria democracia.

Recentemente, no julgamento da ADPF 572 sobre fake news, o STF consagrou o entendimento de que “nenhuma disposição do texto constitucional pode ser interpretada ou praticada no sentido de permitir a grupos ou pessoas suprimirem o gozo e o exercício dos direitos e garantias fundamentais. Nenhuma disposição pode ser interpretada ou praticada no sentido de excluir outros direitos e garantias que são inerentes ao ser humano ou que decorrem da forma democrática representativa de governo”.

Quando se fala de informação veiculada pela imprensa, a identificação da origem e veracidade são sempre rastreáveis. Consequentemente, passíveis de verificação e responsabilização. O problema reside exatamente no grande fluxo de informações que circula nas redes, que não tem origem definida e muito menos credibilidade. São desinformações articuladas com o objetivo de corromper a importância dos fatos e das evidências científicas com o nítido objetivo de difundir e firmar posições ideológicas, valendo-se de apelos emocionais. É uma desinformação profissionalizada, que corrói a democracia.

No livro "Pós-Verdade", Matthew D’Ancona ainda aponta a perda de nexo ou vínculo com o factual, em razão de uma escolha pessoal do indivíduo que, dentre várias informações, opta por aquela que mais lhe agrada ou satisfaz, de acordo com o seu próprio universo. Mas essa escolha individual desconectada decorre exatamente de um processo informativo calcado na desvalorização dos fatos e das evidências científicas em nome de interesses políticos. Ou seja, é um processo informativo corrompido e contaminado, previamente articulado, e que se expandiu brutalmente no contexto pandêmico, terreno fértil para manipulação de informações em prol das mais diversas ambições que não o genuíno interesse público.

É nesse cenário onde a “não verdade” e a “não ciência” servem de pilares para a não implementação de políticas públicas essenciais e eficientes, colocando em risco a sociedade e a democracia, que os jornalistas têm uma função de extrema importância e responsabilidade. A partir de competências investigativas e interpretativas especializadas e diferenciadas, os jornalistas e, em particular, os verificadores de fatos independentes, podem inserir-se dentro desse processo performativo profissionalizado de falsas informações, impedindo a conexão entre os maus atores e a população ou mesmo facilitando o rompimento dessa conexão com a “não verdade” (Luengo e Garcia-Marin).

A checagem de fatos especializada pode ser uma resposta para a falta de autenticidade e de credibilidade, auxiliando a sociedade civil e a mídia de notícias na defesa da verdade e da democracia.

Assentada a importância da imprensa e dos verificadores de fatos, salta aos olhos a tramitação de projetos de lei (PLs 127/2021, 213/2021, 225/2021 e 246/2021) objetivando obstruir o célere acesso aos fatos, à ciência e à verdade. Todos, de uma forma ou de outra, pretendem implantar disciplina específica de responsabilização dessa atividade, com severas penalidades para o descumprimento de obrigações que por eles são criadas. Partem da premissa de insuficiência da nossa legislação e se descuidam no trato de disciplina inserida no Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), que é objeto de discussão no STF (RE 1.037.396), com reconhecimento de repercussão geral.

A motivação desses projetos de lei é lastreada na liberdade de expressão. Estranhamente, em prol da liberdade de uns, pretende-se impedir ou dificultar o direito de outros, de acesso à verdade.

TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.