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Samuel Mendonça

As perversidades de Bolsonaro

A maior delas é afirmar que suas ações priorizam a liberdade quando há recordes de mortes

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Samuel Mendonça

Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação da PUC Campinas e pesquisador do CNPq; é presidente da Sociedade Brasileira de Filosofia da Educação

Em minhas aulas de filosofia do direito, estratégias para o debate sobre a hierarquia de valores ou princípios eram bem recebidas por estudantes. Entre a dignidade da pessoa humana ou a vida, ou entre a vida e a liberdade, que princípio se deve priorizar?

Há diferentes caminhos para fundamentar posições filosóficas sobre os distintos aspectos da vida humana; contudo, era raro encontrar quem não defendesse a vida como um princípio anterior à liberdade, por exemplo. O argumento era muito simples: sem vida não se pode falar em liberdade, embora seja possível, com a privação de liberdade, valorizar a vida.

Esse preâmbulo serve para mostrar a perversidade de Jair Bolsonaro na pandemia, na medida em que além de não priorizar a vida, manipula o discurso na suposta defesa da liberdade.

O debate entre a vida e a liberdade é perverso. A perversidade está na impossibilidade de escolha de uma ou outra posição para a maioria do povo brasileiro em se tratando do coronavírus.

Desempregados que nem dispõem de auxílio emergencial saem às ruas à procura de recursos para a sobrevivência. Não se pode exigir dessas pessoas o isolamento para que morram em suas casas sem antes tentar alimentar as suas famílias. A perversidade aumenta quando se nota, em bairros nobres de várias cidades, pessoas que optam pela aglomeração por farra. Bares lotados, festas clandestinas, incluindo o patético papel de personalidades famosas que afirmam respeitar as regras de distanciamento social, mas são flagradas em aglomeração, como foi o recente caso de Gabigol.

Destaque da perversidade: de um lado há pessoas que não podem ficar em casa por necessidade de sobrevivência. De outro, pessoas que poderiam ficar em casa optam por espalhar o vírus. Como sensibilizar este segundo grupo social de que a vida antecede a liberdade? Eis a pergunta de um milhão de reais.

O posicionamento de Bolsonaro na crise sanitária tem sido catastrófico. Quatro ministros da Saúde e recordes de mortes evidenciam o caos. Contra fatos não há argumentos, e antes de dizer que a responsabilidade é de governadores e prefeitos, é preciso reconhecer o colapso do sistema de saúde e, principalmente, compreender que o fracasso é de cada brasileiro, na medida em que os governantes são representantes da sociedade e suas decisões, portanto, estão legitimadas pelo voto recebido em 2018 ou em 2020.

Em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6341, o STF reforçou o que prevê a Constituição Federal, ou seja, a União pode legislar sobre a pandemia, mas resguardando a autonomia dos demais entes. Então, de forma concorrente, União, estados e municípios têm responsabilidade no enfrentamento da maior crise sanitária do Brasil.

Se Bolsonaro passou a usar o falso argumento que de foi impedido pelo STF sobre a matéria, ou ele não sabe ler, o que é bem sério, ou, sabendo ler, quis criar uma notícia falsa. De uma forma ou de outra, a questão é grave e evidencia o descaso com a população e a necessidade de investigação pela Procuradoria-Geral da República.

A partir da informação falsa de que Bolsonaro não poderia empreender ações para o combate ao coronavírus, o presidente adotou a estratégia de criticar e de sabotar o trabalho realizado por governadores e prefeitos. A perversidade de Bolsonaro em colocar a população contra seus gestores é estratégia eleitoral para o pleito de 2022. Acredita o presidente que poderá convencer a população que governadores e prefeitos são os responsáveis pelos problemas do Brasil. Será?

Perverso é quem aposta na morte podendo optar por vacinas. Perverso é quem não recomenda o uso de máscara podendo fazê-lo. Perverso é quem não recomenda o distanciamento social podendo fazê-lo com campanhas publicitárias. Perverso é quem demite o ministro da Saúde que estava marchando conforme as orientações da OMS e passa a receitar remédios ineficazes para a Covid-19 como política pública, com destaque para a cloroquina.

Perverso é quem não se solidariza com as vítimas da tragédia. Perverso é quem prioriza decretos para o uso de armas sendo que a população precisa de auxílio emergencial para se alimentar. A maior perversidade de Bolsonaro está em afirmar que suas ações priorizam a liberdade quando se tem recordes de mortes no país. Não há liberdade para a morte.

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