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Patricia Bezerra

Bíblia calibre 38

Líderes pseudorreligosos usam Escrituras como instrumento de dominação

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Patricia Bezerra

Psicóloga, pastora e ex-vereadora em São Paulo (2013-2020)

Vivemos um momento no país em que parte da população celebra de forma efusiva o decreto presidencial de fevereiro, que concede a permissão para que caçadores e atiradores registrados possuam até 30 e 60 armas, respectivamente. Além disso, o texto também aumentou para seis o limite de armas por pessoa.

Alguns desses celebrantes não conseguem se conter. Seguindo alguns perfis de cristãos nominais nas redes sociais, observo com lamento imagens de curso de tiro, fotos ostentando armamento pesado e fazendo uso da justificativa leviana e, principalmente, antibíblica, do “direito à defesa”.

Infelizmente, é comum encontrar “cristãos” como esses, adeptos da Lei de Talião, do famoso “olho por olho, dente por dente”. Contudo, a falta de compreensão e estudo do Texto Sagrado, e a manipulação de muitos líderes, geram distorções como essa.

A psicóloga e pastora Patricia Bezerra - Bruno Santos - 29.mai.17/Folhapress

Quem, ao portar uma arma, pode se achar apto o suficiente para definir quem vive e quem morre, quem é “cidadão de bem” e quem é bandido, quando o próprio Jesus diz que aquele que não ama seu irmão é semelhante ao assassino?

A Bíblia tem sido utilizada como instrumento de dominação para a manutenção de feudos eclesiásticos, para a condução de uma multidão a um pensamento formatado e padrão. Isso impossibilita o estudo pessoal da Bíblia e o amadurecimento das emoções e do senso crítico dos fiéis à luz das Escrituras.

É triste, mas a tradição oral da nossa fé cristã se tornou em tradução oral, permeada de contaminação institucional e distorcida pela ótica tirânica e hipócrita de muitos líderes pseudorreligiosos.

É evidente que existem homens e mulheres que são exceção a esse modelo, e isso me traz enorme esperança! Mas o Livro Sagrado deixa muito claro que as nossas armas não são “carnais” (terrenas). Sendo assim, a forma de um cristão genuíno se manifestar nesse mundo não é —e nunca será— por meio da beligerância, do olho por olho, do enfrentamento corpo a corpo. Mas, sim, através da manifestação da justiça e da equidade por nosso modo de viver.

A Bíblia também nos diz que a paz “é fruto da justiça”. Mas essa justiça não é aquela da vingança, é a justiça do reino de Deus. É a que ensina que o nosso papel é combater a desigualdade social e a fome; que afirma o nosso dever de promover oportunidades aos egressos do sistema prisional; é aquela que demonstra que devemos cuidar dos vulneráveis, como os dependentes de substâncias psicoativas; aquela que nos ensina a banir a misoginia, a homofobia, a ​transfobia e o racismo de nosso quintal.

Pegar um revólver e ser valente é fácil! Mas o cristianismo não surgiu para nos tornar valentes. Nós não fomos chamados para termos armas de fogo. O argumento de portá-las como proteção ou defesa é um eufemismo para justificar o desejo de fazer justiça com as próprias mãos. Fomos chamados para pacificar, para andar a segunda milha com quem não nos agrada, para dar alimento ao inimigo se ele tiver fome e para amar os que nos odeiam e maldizem.

Se não for assim, não se iluda: pode-se até ter simpatia pelo Evangelho, mas se está secularizado demais para ser discípulo de Jesus Cristo. Ser seu discípulo não é ser vingador, mas é estar disposto a ser crucificado ou decapitado por escolher o lado certo.

Para os que não estudam e não se dedicam à verdadeira mensagem do Livro Sagrado, a Bíblia pode ser uma arma: para acusar, condenar e julgar.

Que a espiritualidade cristã vença o pragmatismo religioso, que a graça vença a condenação e que todo cristão “manuseie bem a palavra da verdade” e faça uso da arma mais potente, transformadora e muito mais exigente e rigorosa para seu porte: o amor ao próximo.

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