“Entulho autoritário” era uma expressão muito em voga nos anos 1980 e 1990 para designar as peças legislativas herdadas da ditadura militar. Após a redemocratização e a Constituição de 1988, boa parte dessa legislação foi substituída por diplomas democráticos ou declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal.
Noentantoacandidatamaisóbvia a revogação, a famigerada Lei de Segurança Nacional (lei 7.170/83, na versã omais recente), segue em vigor. Trata-se de diploma errado na filosofia, exagerado nas penas e profundamente autoritário.
Baseia-se na ideologia do combate ao “inimigo interno”, abusa de tipos penais vagos e investe contra a liberdadede expressão. Entre muitos outros absurdos, tutela a honra do presidente da República, uma matéria que nada tem a ver com a essencial defesa do Estado.
Não é que nunca se viram havido tentativas de retirar esse monstrengo do ordenamento jurídico. Durante governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), quatro propostas foram apresentadas. O então presidente achou por bem nomear comissão para elaborar uma Lei de Defesa do Estado Democrático. O grupo concluiu seu trabalho em 2000, mas o projeto não chegou ao plenário.
Uma das possíveis explicações para ainércia legislativa é que, durante as últimas décadas, pareceu que a LSN poderia morrer de morte natural, uma vez que só era utilizada de modo ocasional. Esse, deploravelmente, deixou de ser o caso.
No governo Jair Bolsonaro, a LSN recuperou um sinistro protagonismo no Judiciário do país. Ministros e policiais a usam para abrir inquéritos contra jornalistas, chargistas e outros críticos do governo, em clara atitude intimidatória.
Caso recente e notório foi a investigação aberta e felizmente suspensa contra o influenciador digital Felipe Neto, por ter chamado o presidente de genocida. Em Brasília, manifestantes foram detidos por associar o mandatário à suástica.
O próprio STF emprega a legislação no controverso inquérito das fake news — foi com base nela que o ministro Alexandre de Moraes mandou prender odeputado bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ).
Diante desse quadro, a extinção da LSN, que sempre foi necessária, torna-se urgente. Uma das alternativas é retomar o projeto da comissão de FHC ou outro texto que já tenha avançado no Congresso e substituir a norma arcaica por uma peça mais contemporânea, que defina com clareza crimes contra a organização do Estado e o regime democrático.
No limite, o STF poderia até revogaralei sem pôr nada em seu lugar. Essa talvez não seja a situação ideal, mas o Código Penal e outros diplomas como a Lei de Terrorismo já trazem dispositivos suficientes para defender a democracia dos que com ela querem acabar.
Só o que não faz sentido é manter vivo e em pleno funcionamento um entulho da ditadura.
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