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José Vicente, Helio Santos e Hédio Silva Junior

Lições de Sharpeville

Massacre de Beto Freitas e milhares de outros negros são uma constante histórica

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José Vicente

Advogado, sociólogo e doutor em educação, é reitor da Universidade Zumbi dos Palmares e líder do Movimento AR

Helio Santos

Doutor em administração, é presidente da Oxfam Brasil

Hédio Silva Junior

Doutor em direito, é ex-secretário de Justiça do estado de São Paulo

Neste domingo (21), Dia Internacional de Luta Contra a Discriminação Racial, devemos elevar nossas orações à memória dos homens, mulheres e crianças negras assassinadas de forma brutal e cruel pela polícia sul-africana no covarde massacre de Sharpeville, na África do Sul. Na ocasião, em 1960, 69 pessoas morreram e 180 ficaram feridas quando a polícia atirou contra manifestantes desarmados que protestavam contra as leis segregacionistas do apartheid.

Da mesma forma, precisaremos refletir como, em 1960, tempo dos direitos humanos e do Estado democrático de Direito, pudessem, Estado e sociedade matar cidadãos por reivindicarem o direito à vida e à igualdade de se entrar e sair, livremente, nos espaços públicos e privados do seu país.

Uma atualização de nossas reflexões evidenciará que as batalhas de Sharpeville continuam flamejantes. George Floyd, nos Estados Unidos, e João Alberto Silveira Freitas, no Brasil, são lembranças vivas dessa trágica realidade.

O caso João Alberto, brasileiro negro assassinado por seguranças e funcionários de um hipermercado Carrefour em Porto Alegre, permite apreender nuances de Sharpeville. Demonstra categoricamente que o racismo brasileiro é exercido por agentes identificáveis, orquestrados pelo Estado, sociedade, corporações e indivíduos.

A Polícia Federal, responsável pela normatização e fiscalização das empresas de segurança privada, ao tempo que defendeu empresa terceirizada, se omite na formulação de uma grade curricular da formação de vigilantes que trate de práticas discriminatórias e do racismo.

Não se conhece ação da Receita Federal para investigar a tributação do pagamento, “por fora”, do PM fazendo “bico”. Do mesmo modo, chama atenção o silêncio do governo do Rio Grande do Sul sobre a jornada extra e ilegal prestada por seu servidor —e, também, da Prefeitura de Porto Alegre, que ignorou por completo a lei orgânica que determina a cassação do alvará de funcionamento de empresas acusadas de racismo.

Já a empresa Carrefour repassou sua responsabilidade para um comitê “independente”, redentor e efêmero, sem sequer anunciar as medidas tomadas em relação ao gerente e diretor da loja e demais funcionários que, por ação ou omissão, colaboraram para a imolação de João Alberto.

Diante da gravidade traumática e emblemática dessa ocorrência, seriam suficientes as medidas de curto, médio e longos prazos circunscritas à rescisão do contrato com a empresa de vigilância e à internalização da segurança? A criação de um fundo de R$ 25 milhões e algumas metas de contratação de jovens negros? Importante lembrar que a indenização que a cidade de Minneapolis acordou com a família de George Floyd alcançou US$ 25 milhões, ou cerca de R$ 150 milhões.

O resumo dessa ópera trágica é claro e inquestionável. Se a resposta ao massacre de João Alberto e milhares de outros jovens negros, uma constante histórica, não for tratada como paradigma, prioridade e emergência nacional, jamais superaremos nossa Sharpeville permanente.

Se instituições, governos e empresas pretendem verdadeiramente não somente remediar, mas sim superar o racismo, devem adotar medidas de efeito duradouro, que envolvam seus investidores, conselheiros, altos executivos e o conjunto dos seus colaboradores, orgânicos ou terceirizados, mudando o sistema de valores, implementando políticas cotidianas, consistentes, sistêmicas, qualitativas e quantitativas.

Precisam qualificar seu público interno, estimular a qualificação do seu ecossistema e exigir dos prestadores de serviços, especialmente os de segurança, além do compromisso antirracista, a capacitação e a certificação nos fundamentos do combate e gestão das práticas do racismo, intolerância, preconceito e discriminação racial contra os negros brasileiros. Seja no ambiente formativo, seja na educação empresarial continuada. E, por questão de compromisso e atitude de liderança empresarial, os primeiros inscritos precisam ser, justamente, os conselheiros, o presidente e seus demais executivos.

A ideia da terceirização de responsabilidades pode ser moralmente confortável, mas mantém intacta a engenhosa máquina de moer corpos negros. Sem expurgá-la, Sharpeville continuará aqui.

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