Descrição de chapéu
Celso Athayde, Preto Zezé e Edu Lyra

Quando a favela fala, é melhor ouvir

Risco de caos social não é ameaça, é alerta

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Celso Athayde

Fundador da Cufa (Central Única das Favelas) e presidente da Favela Holding

Preto Zezé

Presidente nacional da Cufa, escritor e membro da Frente Nacional Antirracista

Edu Lyra

Fundador e CEO da ONG Gerando Falcões

A devastação da segunda onda da pandemia levou as duas maiores organizações não governamentais focadas em ações sociais nas favelas a juntar esforços. Se a sensação de horror é geral, a desventura tem no pobre o seu alvo preferencial.

Ele está na rua, trabalhando no sacrifício, no risco de ser infectado, porque não pode abrir mão de tentar garantir seu sustento e o de sua família. E se está em casa, na comunidade, não tem as condições necessárias para observar as regras básicas de proteção contra o coronavírus. Lavar as mãos com sabonete e manter distanciamento social não é só para quem quer —é para quem pode.

Muitos não podem. Nós —os 11,4 milhões de pretos, pobres e pardos espalhados nas 7.000 favelas do Brasil— somos maiores que uma Suíça, com seus 8,5 milhões de habitantes. É uma comparação que seria absurda não fosse o fato de que o contraste abissal entre as nossas quebradas e as estações de esqui poderia sensibilizar a sociedade para a triste desigualdade da qual somos todos vítimas. Todos, sim, porque ninguém estará seguro se vierem, quando vierem, o caos social e suas consequências nefastas. Não é ameaça —é alerta.

Lotamos ônibus e trens, fazemos faxina, armamos barraquinhas nas estações de metrô, catamos papel e garrafas pet, guardamos carros, estamos em todos os lugares públicos —e ainda assim continuamos invisíveis. A dor que não tem rosto dói menos nos que não a sentem na pele. O sofrimento anônimo não comove, pois não oferece elementos a uma narrativa. Uma morte é o fim de um sonho interrompido, o adeus solitário na tela do celular, a saudade de quem fica. Um morto é demais. Mais de um quarto de milhão de mortos é estatística.

A repetição do horror anestesia a sociedade. Narcotizados pela desesperança, transformamos o embotamento da empatia em estratégia de sobrevivência psicológica. Há um custo alto para quem está na base da pirâmide. As manifestações de solidariedade do início da pandemia, envolvendo pessoas e empresas, foram essenciais, mas perderam o ímpeto com o auxílio emergencial, e não voltaram a mobilizar a sociedade quando a transferência do governo foi suspensa.

Entendemos que o grau de exaustão e o comprometimento geral da renda tenham afetado a disponibilidade. Mas os favelados continuam insistindo em comer todos os dias, querem se higienizar de acordo com os protocolos, desejam máscaras.

A Cufa (Central Única das Favelas) e a Gerando Falcões demandam medidas urgentes. Não queremos politizar ainda mais a pandemia, até porque quem sempre politiza é o outro, o que não pensa como a gente. Diante da hecatombe social, o debate ideológico está fora de lugar. Esse outro vírus, o da politização, se espalha, sem dar espaço para a construção de uma agenda voltada para os moradores de favelas e periferias.

Não podemos continuar fracassando, como país e sociedade, na construção de uma coalizão política, social e empresarial para vencer a Covid-19. Por isso queremos ações que tenham efeito prático.

Queremos uma campanha oficial que explique a importância da vacina para a preservação da vida. Sim, porque a cultura da desinformação está disseminada. Segundo pesquisa do DataFavela, em parceria com o Instituto Locomotiva, mais da metade dos moradores das comunidades (53%) teme que a vacina não faça efeito, enquanto quase um terço (31%) tem medo de se infectar com o imunizante e mais de um quinto (22%) acha que a vacina pode alterar o DNA ou instalar um chip no organismo —enfim, todo o infame repertório de fake news.

Queremos critérios de vacinação que levem em conta a condição social. Quem limpa o chão do hospital deveria receber tratamento tão prioritário quanto os médicos. Nas escolas, as merendeiras não estão menos expostas do que os professores.

Queremos uma campanha emergencial de doações e transferências de renda —do governo, de empresas, das pessoas— que estanque a carnificina. Esses quereres não esgotam a pauta. O pronto atendimento a essas demandas é suficiente apenas para nos mantermos com o nariz acima da linha da água.

TENDÊNCIAS / DEBATES
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