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Danilo Santos de Miranda

Solidariedade em tempos de antagonismo

Engajamento para mitigar os efeitos da pandemia sofre queda acentuada

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Danilo Santos de Miranda

Sociólogo, é diretor regional do Sesc-SP (Serviço Social do Comércio)

Memórias tomam conta de meus pensamentos quando observo o Brasil de hoje e percebo que antagonismos dificultam o enfrentamento de problemas estruturais que deveriam mobilizar a todos, independentemente de posicionamentos ideológicos ou preferências político-partidárias.

Nasci e fui criado em uma família religiosa. Entretanto nunca encarei a fé como experiência individual de conexão entre o homem e o divino, como se a situação dos demais seres que conosco dividem o planeta fossem secundárias ou desimportantes. Ao contrário, desde menino, a religião ofertou-me ferramentas indispensáveis para a compreensão dos desafios mundanos e para a efetiva transformação social. Isso porque sempre veio acompanhada do exercício da racionalidade, que orienta a percepção do outro como um igual e portador de direitos inalienáveis. A lição aprendida estabelecia que o conhecimento acumulado era a base sobre a qual minhas crenças deveriam se assentar.

O diretor do Sesc São Paulo, Danilo Santos de Miranda - Mathilde Missioneiro - 17.fev.20/Folhapress

Noto, porém, que a realidade vem mudando aceleradamente. A conjuntura polarizada contemporânea levou o filósofo israelense Micah Goodman a chamar a atenção para o fato de que “o mundo intelectual e social das pessoas está se reduzindo aos limites de seu mundo político”. O processo faz com que o debate público se transforme em uma arena de “afirmação de identidades”, em vez de constituir-se como campo para um diálogo franco, que abra caminho para soluções coletivas.

É nesse contexto que gostaria de destacar uma questão pouco lembrada, a despeito de sua gravidade: a fome no país. O novo coronavírus agravou as já precárias condições de vida das camadas mais vulneráveis da sociedade, piorando ainda mais o que sucessivos indicadores vinham mostrando, e com o retorno do Brasil ao Mapa da Fome. E se nos primeiros meses de pandemia verificou-se o engajamento massivo de pessoas e grupos em prol da mitigação de suas consequências, tal esforço vem arrefecendo.

Há mais de 25 anos o Sesc mantém o programa Mesa Brasil, rede de combate à fome e ao desperdício de alimentos, que transfere excedentes de produção e alimentos próprios para o consumo, mas fora dos padrões de comercialização, às refeições de dezenas de milhares de pessoas. Neste momento de crise sanitária, produtos de limpeza e de higiene pessoal também estão sendo coletados e distribuídos, e o programa manteve-se como prioridade institucional. Ainda assim, temos percebido uma queda acentuada das doações.

O retrocesso civilizatório que ora se impõe nos convoca a abraçar o princípio da igualdade radical entre os seres humanos. A pandemia apressa o ultimato: ou reforçamos nossos laços, fazendo a diferença na prática, ou não haverá possibilidade de sobrevivência.

Contribuir para criar condições de vida digna a todas as pessoas é um compromisso que modestamente assumi e procuro manter em todas as frentes nas quais atuo. Se a vacina é a esperança de prevenção frente à Covid-19, o esgarçamento do tecido social requer outro tipo de tratamento. Antes de qualquer coisa, é preciso restaurar o ideal da solidariedade.

TENDÊNCIAS / DEBATES
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