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Maria Homem

As máscaras do luto

O que aconteceu com a nossa capacidade de sentir?

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Maria Homem

Psicanalista, é autora de ‘Lupa da Alma’ e ‘Coisa de Menina?’ (com Contardo Calligaris)

Sempre gostei de um antigo ditado talmúdico que diz que se conhece uma pessoa pelo copo, pelo bolso e pela ira (Kossó, Kissó e vê-Kaassó). Ou seja, nos revelamos pelas frestas do descontrole, justamente quando não conseguimos disfarçar nossos às vezes secretos apetites ou impulsos. De certa forma há milênios já sabemos que o Eu não é senhor em sua morada, como viria a enunciar Freud no início do século 20. Ele pode até tentar usar infinitos recursos de repressão e adestramento, mas, ao fim da maratona, o Eu está suando, exausto e pedindo arrego: não consigo controlar meu ser e minha vida (nem a vida dos outros) como gostaria. As frestas me escapam.

Mas hoje, além do copo, do bolso e da ira, eu gostaria de ajuntar um quarto elemento à série. Um homem se revela também em sua relação com a morte. Como você se coloca diante do fato de que é mortal? E, igualmente difícil, como você se coloca diante da morte do outro? Alguns diriam que a própria filosofia contemporânea já começa com a consciência de sermos um “ser-para-a-morte”.

Inventamos várias estratégias para dar conta da morte. Nós, como coletivo, e cada um de nós, a cada dia. A mais antiga delas nasce com o início da civilização e já tem uns bons 70 mil anos: fazemos rituais e enterramos nossos mortos com objetos e em circunstâncias que os ajudariam a seguir em sua jornada numa outra vida. Agora está no céu. Agora é uma estrela. Agora está com Deus. Agora está com os deuses e as estrelas no céu. Mudou de plano, de dimensão, de estatura, de envergadura, de círculo da espiral, de vibração astral. Vive a outra vida, quiçá eterna. No fundo, a morte é tão difícil e enigmática que acabamos por roubar no jogo: desdizemos sua existência e reafirmamos a continuidade da vida.

Uma outra tática, mais moderna, acompanha nossos cálculos estratégicos de perda, ganho e lucro. Aceito a morte, computando-a como perda, e imediatamente foco num ganho possível. Num ganho material ou simbólico. Perdi tal coisa, tal pessoa, mas ganharei um cargo, um título, uma herança. Ou o reconhecimento da comunidade. Temos até expressões para dar conta desses movimentos: vampirizar o morto, urubus em cima da carniça. Algo disso está em “A morte de Ivan Ilitch”, a obra-prima de Tolstói. O que você pode ganhar com a morte? Não parece ser uma ideia estranha atualmente (ou sempre). A vida ou a economia? Você prefere morrer de vírus ou de fome?

Há ainda uma outra máscara da morte, e quem sabe mais moderna ainda, século 21. Estou sofrendo, alguém morreu, perdi algo... Então, é o momento: vou pegar carona, criar minha narrativa e, quem sabe, sair do anonimato. Vou postar uma imagem minha com a pessoa (se for famosa, melhor), vou mudar minha foto no WhatsApp, no Instagram, no Facebook, e ainda marcar: #de luto. Vocês sabem que aumentou muito o comércio de figurinhas e ilustrações de luto na pandemia? Conhecemos o roteiro: redes sociais servem para fomentar uma cultura imagética cada vez mais narcísica que tenta iludir nosso assustado Eu, cada vez mais vulnerável.

Para além dos sofrimentos e impedimentos da pandemia, não sei se estamos de fato conseguindo realizar um trabalho de luto. Uma real elaboração diante da perda. Só usamos máscaras, no grande teatro. O que aconteceu com a nossa capacidade de sentir? A anestesia é defesa de base, mecanismo neuropsíquico de sobrevivência. Hélio Schwartsman lembrou recentemente da frase antológica: “uma única morte me choca, um milhão de mortes é uma estatística”.

E assim, justamente aqui, surge a mais curiosa de nossas estratégias. Parece que agora acertamos a mão. Como? Operando a morte. Como se opera na Bolsa. Somos nós próprios os operadores da morte.

Não sou fraco, não a temo mais, pois sou eu que a realizo. Se são vários cadáveres e se esse número me ultrapassa, tanto melhor. Fato da vida. É tão maior que eu... Enquanto pobre indivíduo impotente, posso lavar as mãos e me desincumbir de qualquer responsabilidade. Melhor até que haja esses 999.999 a mais para que eles possam fazer a névoa que eu preciso para deixar de ver a face humana de uma vida concreta. A história, a vida, o calor e a perda incomensurável daquele corpo que é o do meu filho, meu amante, meu pai, meu vizinho. Nada como poder me refugiar no sofrimento difuso da morte em massa para me aliviar da angústia trágica da perda do Um.

Obrigada, presidente. Obrigada, cúmplices.

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