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Luciana Temer

Dos riscos iminentes de retrocesso

Como será quando pais não forem mais obrigados a mandar filhos à escola?

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Luciana Temer

Advogada, professora da Faculdade de Direito da PUC-SP e presidente do Instituto Liberta

Dois projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional colocam em risco a integridade física e mental de meninas. Não conseguia me decidir sobre qual dos dois deveria escrever até perceber que não dava para escolher: apesar de tratarem de assuntos diferentes, ambos afetam diretamente uma questão da qual temos falado sistematicamente: a violência sexual infantil. Então, lá vai. Um regulamenta a chamada “educação domiciliar”, o outro cria o que vem sendo chamado de “bolsa estupro”.

Já escrevi neste espaço sobre os riscos da educação domiciliar quando o STF decidiu sobre a obrigatoriedade de regulamentação legal para que a prática fosse adotada. À época defendi que qualquer lei nesse sentido seria inconstitucional. É isso que continuo defendendo. O argumento que apresentamos para tanto nada tem a ver com questões pedagógicas, mas sim com os altos índices de violência intrafamiliar. Repito aqui dados já trazidos anteriormente: mais de 70% das violências sexuais contra crianças e adolescentes acontecem dentro das residências, cerca de 40% delas praticadas por pessoas com vínculo familiar (mais de 80% homens) e mais de 35% em caráter de repetição, num total de 141.105 casos registrados.

Manifestantes protestam em Brasília contra posição do governo Jair Bolsonaro em caso de menina de 10 anos que engravidou após estupro - Pedro Ladeira - 20.ago.20/Folhapress

Esses dados, colhidos entre 2011 e 2017, estão no boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, publicado em 2018. Mas deixa eu dar um dado mais atualizado. No início da pandemia, o Instituto Liberta, que presido, fez uma parceria com a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo a fim de criar uma estratégia para que os alunos das escolas pudessem pedir socorro mesmo confinados em casa. Sim, porque quando a criança frequenta a escola ela pode falar ou alguém pode perceber a violência; quando não, e a violência é intrafamiliar, não tem a quem recorrer. Criamos um site interativo, com inteligência artificial, que ficou disponibilizado para um certo número de alunos. Em alguns meses dessa experiência identificamos 200 casos de violências diversas e 52 casos de violência sexual. E o que vai acontecer quando os pais não forem mais obrigados a mandar os filhos para a escola?

A segunda situação é a do projeto de lei 5.435, um dos projetos que tentam restringir e mesmo exterminar as hipóteses de aborto legal, que hoje são três: perigo de vida para a gestante e gravidez decorrente de estupro, ambas previstas no Código Penal, e o aborto no caso de feto anencéfalo, por decisão do STF.

Esse projeto nos chamou atenção justamente por não fazer menção a palavra aborto em seu texto e estar sendo tratado por parte da mídia e nas redes sociais como “bolsa estupro”. O texto tem vários artigos dispensáveis, pois já previstos no ordenamento jurídico, que mascaram a real novidade: proibir o aborto legal decorrente de estupro.

A proposta consegue a proeza de atrair a atenção para a previsão de um auxílio financeiro para a mulher que, não tendo condições de arcar com as despesas do filho fruto do estupro, poderá ter ajuda estatal de um salário mínimo até que este complete 18 anos ou receba pensão do genitor.

Ora, enquanto se discute a imoralidade desse projeto (é isso o que a mim parece) deixa-se de lado a discussão mais importante, que é a proibição absoluta do aborto decorrente de estupro! Qualquer estupro, inclusive o estupro de vulnerável, caracterizado pela relação sexual de um adulto com uma criança ou adolescente de até 14 anos, com pessoas com enfermidade ou deficiência mental que não tenha discernimento para o ato ou, ainda, com quem, por qualquer outra causa, não possa oferecer resistência. Traduzindo: uma menina de 10, 11 ou 12 anos grávida não poderá abortar —mas poderá receber auxílio de um salário mínimo para criar o filho. Num país que tem mais de quatro meninas com menos de 13 anos estupradas por hora, isso é um descalabro!

Juntemos esses dois projetos de lei e teremos meninas violentadas dentro de casa, sem possibilidade de pedir socorro na escola, que podem engravidar, sem possibilidade de abortarem. Um quadro, no mínimo, medieval.

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