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Luís Correia

ECMO no tratamento da Covid-19 e a necessidade de racionalização

Uso no SUS de máquina que faz a função do pulmão exige ampla discussão

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Luís Correia

Professor-adjunto da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública

Nos últimos dias, no contexto do tratamento da Covid-19, surgiu no Brasil uma epidemia de artigos jornalísticos a respeito da tecnologia apelidada de ECMO: oxigenar o sangue em aparelho fora do corpo, substituindo temporariamente pulmões comprometidos agudamente.

Fenômeno surgido na era da Covid-19, a discussão de tratamentos específicos com a população geral varia de condutas fantasiosas a tecnologias benéficas. ECMO está nesta última categoria. No entanto, precisamos considerar que discussões técnicas, de difícil racionalização, correm o risco de serem mal compreendidas pela sociedade.

Internado com Covid-19, o ator Paulo Gustavo está sendo tratado com o ECMO - Victor Pollak/Globo TV/AFP

A ciência da economia comportamental indica que a espécie humana tende a superestimar o benefício de soluções, o que se reproduz em médicos que, inconscientemente, superestimam a “eficácia” de tratamentos. Este fenômeno se torna escalável quando traduzido para a população geral.

Precisamos recalibrar de forma realista o benefício do ECMO no contexto da pandemia do novo coronavírus. Há grande diferença entre tecnologias de efeito sistêmico (tratam a pandemia, impacto escalável) versus tecnologias de efeito individual. Em condutas de efeito sistêmico, o paradigma é multiplicativo: uma intervenção aplicada a uma pessoa (um indivíduo vacinado) beneficia uma coletividade de pessoas. Por outro lado, em tratamentos individuais (ECMO), o efeito é limitado ao paciente que o recebe. E este efeito se reduz a uma probabilidade: precisamos utilizar o tratamento em muitos pacientes para salvar um deles.

Dois fenômenos justificam o caráter probabilístico dos tratamentos salvadores. Primeiro, nenhum é 100% eficaz. Segundo, nem todas as pessoas elegíveis para o tratamento iriam morrer sem o tratamento.

Utilizando dados de revisão sistemática de ensaios clínicos randomizados, publicada em 2020, a utilização de ECMO em doença respiratória severa reduz em 25% a probabilidade de morte: em pacientes elegíveis que não utilizaram ECMO, a letalidade foi de 48% (nem todos morrem), reduzida a 36% nos que receberam ECMO (nem todos são salvos). Na realidade, tratamentos são “pílulas de probabilidade” e não garantias de salvamento em pacientes de curso clínico inexorável.

Ao pensar na vítima identificável, desejaremos com razão usar de todos os esforços. Por outro lado, em saúde coletiva visamos o benefício sistêmico e neste precisamos considerar um dos pilares do pensamento econômico, o “princípio de custo-oportunidade”: uma escolha implica perda de oportunidade de outras escolhas.

A discussão quanto à oferta de ECMO pelo maior sistema público de saúde do mundo (SUS) é complexa e qualquer decisão tem consequências não intencionais de diferentes naturezas. Essa não é uma conversa a ser reduzida a minutos de cobertura jornalística.

Esta pandemia é oportunidade de letramento científico da sociedade, em prol do pensamento baseado em incerteza, probabilidade e princípios de decisão econômica. Medicina, do latim “mederi”, é a difícil escolha do melhor caminho.

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