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Bianca Tavolari

Inquilinos na rua

Na contramão de outros países, teto para reajuste do aluguel sofre resistências descabidas

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Bianca Tavolari

Professora do Insper

Está em discussão um projeto de lei, de autoria do deputado federal Vinicius Carvalho (Republicanos-SP), que propõe que o reajuste em contratos de aluguel tenha o IPCA como teto. Hoje, a Lei do Inquilinato não estipula qualquer índice de antemão, deixando as partes livres para decidir o critério. Por convenção, a vasta maioria dos contratos de locação usa o IGP-M. O projeto de lei vem em um momento em que o IGP-M acumulou alta de 31,1% em março de 2020, tendo fechado o ano passado em 23,14%, numa escalada sem precedentes, motivada especialmente pela alta do dólar. Ao estipular um teto, o projeto de lei procura moderar o reajuste à inflação real do país.

Críticas ao projeto não tardaram a vir. É plenamente possível discordar da proposta, seja na forma ou no conteúdo. O que não é admissível é fazer dela um espantalho. Argumentos de que estaríamos diante de tabela de preços, congelamento de valores ou que o projeto representaria o ápice da interferência indevida do Estado em relações privadas giram em falso. São cortina de fumaça para blindar ganhos extraordinários com rendimentos do aluguel em um momento de crise, em que a vulnerabilidade habitacional se aprofunda.

O projeto não impede que inquilinos e proprietários continuem negociando o valor do aluguel ou mesmo o índice de reajuste. As partes não são obrigadas a adotar o IPCA: podem escolher um índice menor. Não há intervenção estatal para quebra de contrato. Os valores continuam a ser reajustados anualmente. A novidade é o limite para correção. A ideia de que contratos são redomas de pura e absoluta expressão da vontade de particulares também é falsa. Há diversas balizas legais para ajustar relações privadas.

A Lei do Inquilinato proíbe, por exemplo, definir o valor do aluguel em moeda estrangeira. Permite, em outro exemplo, o despejo do inquilino em 15 dias, sem ser ouvido, caso deixe de pagar o aluguel. O projeto de lei apenas alteraria uma das regras vigentes, não há nada de incomum ou de inconstitucional.

O teto se justifica diante do conflito redistributivo que marca as relações de locação no Brasil. Dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE, analisados por Sergio Firpo e por mim, mostram que, em 2018, 17% dos domicílios brasileiros pagavam aluguel (11,7 milhões de famílias). Famílias do grupo de renda mais baixa, de até dois salários mínimos (SM), gastam 34% de seus rendimentos em aluguel. Por outro lado, apenas 4,9% ou 3,4 milhões de famílias recebiam rendimentos derivados do aluguel.

Quando interpelamos os dados, é possível perceber a concentração brutal entre os que recebem valores de aluguel à medida que a renda familiar aumenta: 12,1% das famílias ganham mais de 25 SM, e 12,4% ganham de 15 a 25 SM. Há, portanto, desigualdades evidentes entre inquilinos e proprietários.

Mesmo em um cenário pré-pandemia, o reajuste na casa de 30% já representaria um choque importante aos mais vulneráveis. Além disso, não há paridade de armas entre locadores e locatários: o locador sempre pode recorrer ao despejo caso não haja pagamento. Atrelado aos insumos de materiais de construção e preços de produtores em dólar, o IGP-M deixa de acompanhar os valores dos salários ou mesmo dos preços finais ao consumidor. Causa espécie de enriquecimento injustificado aos proprietários. Diante do cenário insustentável, imobiliárias já começaram a adotar o IPCA como padrão.

A situação é ainda mais grave na pandemia. Grande parte dos que pagam aluguel perdeu rendimentos ou mesmo emprego, especialmente os mais pobres e informais. O projeto não acaba com qualquer reajuste diante da maior crise dos últimos tempos —o que seria bastante razoável, como mostram os exemplos das moratórias a despejos nos Estados Unidos, na Espanha e na Argentina. Propõe manter os ganhos —reais— controlados. Parte do mercado imobiliário vê a mudança como “congelamento”, quando seria apenas ganhar um pouco menos. Ganhar um pouco menos em plena pandemia não parece ser suficiente.

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