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Tatiana Sugui

No divã com Contardo

Tê-lo como analista provocou mudanças sem tamanho na minha vida

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Tatiana Sugui

Psicanalista, foi atendida por Contardo Calligaris nos últimos cinco anos

Dizem que cada um tem o analista que merece... Mas, quando se trata de Contardo Calligaris, é bom duvidar. Até porque seria pretensioso dizer que eu merecia.

Desde há muitos anos eu escrevia com certa regularidade a Calligaris para lhe falar de sua coluna na Folha, para lhe dizer que escutá-lo era uma fonte de inspiração para a vida e para a psicanálise.

Também lhe escrevia para contar minhas desventuras, sobretudo no amor. E ele, sempre atento, respondia às vezes com um "obrigado pelo carinho" e "obrigado, um abraço"; e às vezes dizia um pouco mais para responder aos meus questionamentos e também ao meu sofrimento.

Um dia escrevi um longo e-mail e pedi desculpas. Disse que se tivesse cacife lhe pediria um horário. Logo me respondeu, rapidamente: "Não precisa de cacife para marcar um horário comigo". Ainda neste e-mail, Contardo me disse que estaria viajando, mas que quando voltasse falaria de um horário —o que eu duvidei, claro. Mas ele mais uma vez me surpreendeu, respondendo exatamente como eu não esperava: como prometido, voltou e me perguntou o que era possível pra mim. Marcamos, então, um horário.

Admirado por muitos, suscitava a inveja e a rivalidade de seus colegas analistas, em sua maioria homens que travavam com ele uma disputa às vezes pública, às vezes não. Eu, como também o admirava (e continuo), achava que não merecia o seu tempo de tão especial que ele era pra mim. E ele, analista, nunca deixava de me surpreender quanto a isso.

Para começar, Contardo me recebeu por um bom tempo sem se referir ao dinheiro (assunto tão temido pelos analistas). Depois de algumas sessões, comecei a me angustiar, achando que não conseguiria pagá-lo. (Um parêntese: como analista, posso dizer que há sempre um impagável na análise). Decidimos então por um valor que eu poderia pagar, claro. Isso significa que Contardo não era desses analistas que cobravam preços exorbitantes só porque tinha olhares admiradores para seus feitos —e essa era uma prova imbatível para mim: ali eu encontrava não o analista mais pop da cidade, mas um analista.

Eu sempre tive a impressão de que, para ele, o dinheiro era sem importância; e ele me confirmava isso em seus apontamentos. No momento de pagar, sentia que era quase um favor que fazia em receber o meu dinheiro, como se não precisasse e até se esquecesse.

Eu sempre tinha também a percepção de que seria posta para fora do seu consultório quando menos esperasse, já que me via tão pequena e sem importância diante dele. Um dia fiquei esperando pela sessão em seu consultório e decidi ir embora porque já passava do nosso horário. Escrevi dizendo que achava que ele havia se esquecido de mim, ao que ele me respondeu, imediatamente: "Eu que achei que tinha sido esquecido. Volte."

Mais uma vez Contardo me mostrava que nenhuma vida é sem importância, mesmo que diante da grandeza do Universo (exercício que ele recomendava: visitar observatórios do espaço) parecêssemos pequeninos, poeira de vida. Com Calligaris aprendi que essa reverência era uma grande bobagem, e ele sempre encontrava os meios analíticos ou não de me dizer.

Quando adoeceu, imaginei que fosse passageiro e que viveria bem até os 94 anos. Acho que é o que todos que nos sentimos órfãos gostaríamos que acontecesse —e talvez ele também. Tenho certeza de que lutou até onde pôde porque gostava da vida.

Ele se ausentou algumas vezes durante as nossas sessões online, que começaram com a pandemia, em razão de sua saúde. Nossa última sessão foi em janeiro. Depois disso, embora eu deixasse mensagens, pouco a pouco ele deixou de responder, o que mostrava que seu estado era realmente grave. Nessas horas imaginei de tudo... E, sem saber o que fazer, também fiz algumas pequenas loucuras para saber dele, mas sem sucesso. Perguntava-me: "Que diferença faria?". Talvez nenhuma, mas teria a chance de me despedir. Escrevi um último e-mail algumas semanas antes de sua morte para que ele não partisse sem saber que viveria em mim. Não sei se leu, mas acho que me ajudou a aguentar esse silêncio, essa ausência.

Também pensei que precisaria passar por isso sozinha. Quando soube através de seu filho, Max, que o fim se aproximava, acendi um cigarro e pensei naquela famosa frase que ele dizia ao responder à pergunta: "O que você pensaria se estivesse num avião em queda?". Ao que ele respondia: "Deveria ter acendido um último cigarro".

Contardo fica em mim, em todas as marcas que me deixou, em todos os livros e pensadores que ele citou e que eu, apaixonada, corria quando podia para ler suas leituras. Ele fica em mim nessa atenção, nessa delicadeza que sempre teve em responder à toda e qualquer mensagem que lhe enviava, como nenhum outro faria. Fica em mim quando, compreendendo o meu mau momento, topou continuar me atendendo mesmo eu não conseguindo lhe pagar, porque o dinheiro é muito pouco perto da vida.

Fica em mim como um grande homem, um grande analista. Uma semana após a sua morte teríamos sessão às 11h30. Da primeira vez em que ele me disse que precisaria se ausentar, veio-me como uma resposta imediata o soneto da fidelidade de Vinícius. "De tudo ao meu amor serei atento, antes e com tal zelo e sempre e tanto...".

Dizem que o amor de transferência é tão verdadeiro quanto o verdadeiro amor; então, deixo aqui a minha carta de amor. Obrigada, querido Contardo.

PS.: Em tempos em que analistas se tornam celebridades, é sempre bom lembrar que Contardo, embora fosse uma celebridade, nunca deixou de ser um analista. Tê-lo como analista provocou mudanças sem tamanho na minha vida.

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