“The forces of fate that bear down on man and threaten to break him, also have the capacity to ennoble him”
(As mesmas forças do destino que destroem o homem também têm a capacidade de enobrecê-lo)
Viktor Frankl, 1984
Este breve fragmento reflexivo do psicoterapeuta Viktor Frankl (1905-1997) lança luz sobre a borda limítrofe entre o viver e morrer, entre o desalento e o deslumbramento. Nesta fronteira, dolorosa e assustadora, é onde se encontram as forças vitais mais nobres que podem recuperar a vida ou, ao menos, dar conforto e dignidade à perda inevitável dela.
A realidade da pandemia tem dimensões variadas, a saber: a dimensão do vírus e seu potencial de transmissão/contaminação; a dimensão do distanciamento social e seu impacto sobre a liberdade do indivíduo; e, sobretudo, a esfera hospitalar e seu limite para acolhimento das necessidades de tratamento e internação.
Cenário epidêmico desolador. O sistema hospitalar mostra-se em estado crítico e à beira do colapso. Neste contexto, e em razão das demandas emergentes para ajudar as equipes de saúde, estas mesmas que se encontram exauridas pelo "burn-out" e insuficientes para atender à demanda exponencial de casos, engendrou esforços para que todos os médicos do complexo hospitalar da Unifesp, em São Paulo, fossem convocados a prestar sua solidariedade no combate à Covid-19, inclusive alguns psiquiatras.
No pronto-socorro (PS), ao todo, são cerca de 40 a 50 leitos, a depender da pressão de demanda. Todos os admitidos nesta unidade passam por rastreamento clínico, laboratorial e radiológico, além do teste de swab (semelhante a um cotonete) da orofaringe para diagnóstico do Sars-CoV-2.
Após o rastreamento, os pacientes avaliados como mais graves são colocados em fila de espera para admissão na UTI. Em linhas gerais, estabeleceram-se três níveis para critérios de gravidade, sendo o parâmetro de autonomia respiratória o principal: 1 - aqueles que apresentam autonomia respiratória, em ar ambiente; 2 - os que necessitam de cateter de O2; e, 3 - os mais graves, que requerem intubação orotraqueal (IOT). Os demais são mantidos na retaguarda do próprio PS, sob vigilância das equipes médicas e de enfermagem, com salvas à infatigável briosa equipe de enfermagem.
Após 25 anos, reexperimentar a atividade de um plantão em pronto-socorro foi algo desafiador para o dr. Adriano Lima —reexperimentar esta mesma atividade na especialidade da clínica médica foi ainda mais. Havia algo que sobrepujava ao desafio. Havia ali o espírito de corpo em prol de um bem maior.
Um dos momentos mais marcantes foi a troca do plantão. De um lado, a equipe que se retirava e transmitia as evoluções clínicas de cada caso; do outro, a equipe do turno noturno, que, atentamente, recebia essas evoluções. Residentes do 1º, 2º e 3º anos (R1, R2, R3) estavam ali. Todos bem jovens, incluindo o chefe de plantão, brioso e zeloso, que, há cerca de cinco anos, havia passado conosco no curso da graduação.
Sentimento de admiração por esses jovens, com faces de garotos e postura de homens dignos, frente ao desafio de zelar por aqueles enfermos. O espírito de corpo era patente, bem como a disponibilidade solidária em oferecer ajuda.
Após a passagem do plantão, os casos foram divididos entre nós. A função clínica mais importante, como já mencionado, era procedermos à avaliação alguns parâmetros fundamentais. Dentre eles, o grau de autonomia respiratória, sinais vitais gerais (incluindo o estado de consciência) e evidências de congestão venosa (edema) ou torácica (dispneia e arritmias cardíacas).
A função humana de maior valor era oferecer dignidade aos pacientes. Dentro dela, o desafio e o medo, intrínsecos à atividade médica em unidades de tratamento para Covid-19, deram lugar ao privilégio. Privilégio de registrar, na retina de nossas memórias, o olhar triste dos pacientes, por vezes lacrimejante. Mas, nesses mesmos olhares, estava ali a gratidão pelo nosso tempo de escuta (tão raro nos últimos tempos), empenho de esforços e oferta de ajuda.
Nessas memórias, principalmente afetivas, ficará inscrita a nota de maior alcance dessa complexa vivência, onde o sentimento de desalento, pelo contexto de sofrimento, deu lugar ao deslumbramento, por fazermos parte desse esforço coletivo de ajuda.
Por fim, e principalmente, fazer parte desse espírito de corpo institucional e humano não foi apenas um desafio; foi, sobretudo, um privilégio. O privilégio de dar sentido ao significado das linhas introdutórias deste texto, representadas pela reflexão de Frankl.
TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.