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Quantas vidas cabem em um voto?

Estudo aponta que apoio a Bolsonaro tem correlação direta com mortes por Covid-19

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Até 28 de março de 2021, o Brasil contava mais de 312 mil mortes por Covid-19, 148 mortes por 100 mil habitantes. O país registra o maior número de óbitos por dia no mundo desde 9 março, quando ultrapassou os Estados Unidos na média móvel de 7 dias. O Brasil apresenta, ainda, uma taxa de aceleração da média diária de mortes por Covid-19 em 2021 frente à de 2020 de 100,7%, considerando a média diária de 1.350 registrada em 2021 e de 673 em 2020. Neste ritmo, o país ultrapassaria o marco de vidas perdidas em 2020 ainda no primeiro semestre de 2021.

Desde o início da pandemia, a resposta do governo federal tem sido alvo de severas críticas. Ora pela instabilidade institucional (ao todo foram quatro ministros da Saúde em 12 meses), ora pela falta de coordenação com outros entes da federação, ou ainda pela lentidão na negociação para obtenção de vacinas, EPIs e demais insumos. Menos estudado, porém não menos importante, é a influência do discurso do presidente da República no comportamento da população. Por discurso, entendemos não apenas a retórica, mas o conjunto de falas, posicionamentos e atos públicos de uma liderança.

Desde março de 2020, Jair Bolsonaro tem se posicionado frontalmente contra as medidas recomendadas pela comunidade científica. Através da criação de uma dicotomia artificial entre economia e saúde, se colocou como principal opositor a qualquer política de restrição da circulação de pessoas e de distanciamento social. Foi além: criticou o uso de máscaras, estimulou aglomerações, incentivou comerciantes a abrirem seus comércios e, por fim, advogou pelo uso de medicamentos e tratamentos sem eficácia comprovada contra a Covid-19.

Bolsonaro é uma liderança extremamente carismática, com uma conexão direta e grande capacidade de engajamento junto a seu eleitorado. Quando candidato em 2018, obteve 46% dos votos válidos no primeiro turno. A literatura científica aponta que lideranças políticas têm efeitos concretos no comportamento de seus seguidores.

Para o caso brasileiro, Ajzenmann et al. (2020) mostram que o distanciamento social tendeu a ser relativamente menor, e a incidência de casos maior, em municípios que votaram mais em Jair Bolsonaro nas eleições de 2018, logo após demonstrações públicas do presidente se posicionando pela minimização da gravidade da crise e do risco sanitário nos primeiros meses da pandemia.

Em 2021, no momento de maior gravidade da crise no país, cabe portanto perguntar em que medida a aceleração da mortalidade observada nas últimas semanas tem sido maior exatamente nos estados e municípios onde o presidente obteve mais apoio político e votos nas eleições de 2018. Como a literatura científica sugere, nestes lugares o discurso do presidente teria seu maior impacto sobre comportamento social.

Extraímos o número de óbitos diários por Covid por município e estado até 28 de março de 2021. Para medir a aceleração do número de óbitos, calculamos primeiramente a média diária de óbitos ao longo de 2020, a partir da data do primeiro óbito por local, e também a média diária de óbitos no ano de 2021, até o dia 28 de março. Medimos a aceleração de óbitos como a variação percentual, por local, destas duas médias diárias. Além disso, analisamos a evolução da média móvel de sete dias de óbitos, tanto novos óbitos diários quanto totais, acumulados.

Para medir a adesão ao distanciamento social em estados e municípios, usamos o Índice de Isolamento Social (IIS) ao nível municipal e estadual desenvolvido pela In Loco, uma companhia de tecnologia. Este índice consiste no percentual de indivíduos naquele município ou estado que permaneceram em casa por dia, coletado a partir de aplicativos de dispositivos móveis e disponibilizados de forma anonimizada. Especificamente, calculamos as médias mensais do nível de isolamento por local, e comparamos então as médias de março de 2021 e a de fevereiro de 2020, primeiro mês da amostra e único anterior à pandemia.

Utilizamos dados das eleições presidenciais de 2018 disponibilizados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em nível municipal. Assim como em Ajzenmann et al. (2020), calculamos o percentual de votos válidos em Jair Bolsonaro no primeiro turno por município e também o agregamos por estado.

Figura 1. Evolução da média móvel de mortes por Covid-19

Nota: Dados de óbitos por Covid-19 por estado até 28/03/2021 obtidos em https://covid19br.wcota.me/. Estados cujos governadores são considerados alinhados ao governo federal: Acre, Amazonas, Goiás, Rio de Janeiro, Rondônia, Roraima, Minas Gerais.

Como medida de alinhamento de governadores com o governo federal, criamos uma "dummy" de alinhamento com base na análise de uma série de pronunciamentos e presença em eventos promovidos pelo Governo Federal. Desta forma, classificamos como alinhados os governos estaduais do Acre, Amazonas, Goiás, Minas Gerais, Paraná, Rio de Janeiro, Rondônia e Roraima.

A "figura 1" (acima) documenta a aceleração recente na média de óbitos: a média móvel de novos óbitos dividida por 100 mil habitantes, no gráfico da esquerda, encontra-se em ascendente, e mais de duas vezes superior à média registrada no pior momento de 2020. Em termos de óbitos totais, é possível verificar pelo gráfico da direita que estados cujos governadores são considerados alinhados ao governo federal ultrapassaram em janeiro de 2021 os óbitos totais dos estados cujas gestões não são consideradas alinhadas, divididos por 100 mil habitantes.

A "figura 2" (abaixo) apresenta a aceleração da média diária de mortes por Covid-19 em 2021 frente à de 2020 —para municípios, capitais e estados, respectivamente— vis-à-vis o percentual de votos em Jair Bolsonaro no primeiro turno das eleições de 2018. Nos três níveis de análise, nota-se uma correlação positiva entre o percentual de votos em Bolsonaro e a aceleração de óbitos em 2021. A começar pelo gráfico superior da "figura 2", notamos que municípios com maior proporção de votos em Bolsonaro apresentam maiores taxas de aceleração de óbitos em 2021 frente à média de 2020. Também podemos perceber o contraste entre municípios das regiões Sul e Nordeste: por um lado, a primeira apresentou os maiores percentuais de votos em Jair Bolsonaro, bem como as maiores taxas de aceleração de óbitos; por outro, a segunda exibiu os menores percentuais de votos em Jair Bolsonaro, bem como as menores taxas de aceleração de óbitos.

Figura 2. Percentual de votos em Bolsonaro e taxa de aceleração de óbitos

Nota: Dados de óbitos por Covid-19 por estado até 28/03/2021 obtidos em https://covid19br.wcota.me/. Municípios com menos de 10 óbitos em 2020 foram excluídos do painel (a). Dados eleitorais obtidos em https://www.tse.jus.br/eleicoes/estatisticas/repositorio-de-dados-eleitorais-1/repositorio-de-dados-eleitorais.

O caso das capitais não é diferente, como descrito no segundo gráfico da "figura 2". Aquelas com maior proporção de votos em Bolsonaro apresentam as maiores taxas de aceleração de óbitos em 2021 frente à média de 2020. Tomemos o caso de Boa Vista (RR): trata-se da capital com o segundo maior percentual de votos em Bolsonaro (69,3%) e a quinta colocada no que se refere à taxa de aceleração de óbitos (134,8%). Já São Luis (MA) contabilizou o quarto menor percentual de votos em Bolsonaro (36,6%), bem como a segunda menor taxa de aceleração, com uma queda de 21% na média de 2021.

No último painel da "figura 2", podemos observar o caso dos estados. No Piauí, por exemplo, estado com menor percentual de votos em Bolsonaro no primeiro turno (18,8%), a taxa de aceleração de óbitos é uma das mais baixas (34,6%). Em Santa Catarina, por outro lado, Bolsonaro recebeu 65,8% dos votos válidos no primeiro turno —trata-se do estado que proporcionalmente mais votou em Jair Bolsonaro no primeiro turno— e a taxa de aceleração de óbitos superou 200% em 2021.

Em seguida nos voltamos ao distanciamento social, como possível mecanismo por trás desta correlação. A "figura 3" (abaixo) descreve como o apoio a Bolsonaro está relacionado ao distanciamento social. De forma similar aos resultados de Ajzenmann et al. (2020), verificamos que quanto maior o apoio a Jair Bolsonaro, menor o índice de distanciamento social no estado frente à média de fevereiro de 2020, anterior à pandemia. Novamente percebemos as regiões Sul e Nordeste em situações bastante distintas: municípios do Nordeste apresentaram em março de 2021 níveis de distanciamento social mais elevado, em relação a antes da pandemia, enquanto os do Sul registraram níveis mais baixos, assim como os do Sudeste. Para fins de comparação, o Brasil registrou uma média de 29,9% de distanciamento em fevereiro de 2020 e de 37,8% em março de 2021 —uma diferença de 8 pontos percentuais.

Figura 3. Percentual de votos em Bolsonaro e distanciamento social

Nota: Dados eleitorais obtidos em https://www.tse.jus. br/eleicoes/estatisticas/repositorio-de-dadoseleitorais-1/repositorio-de-dados-eleitorais. Dados de distanciamento social compartilhados de forma anonimizada pela In Loco. Representamos no gráfico a diferença entre a média do percentual de indivíduos por local permanecendo em casa a cada dia, para o mês de março de 2021, subtraída da média de fevereiro de 2020. Dados de distanciamento em março de 2021 foram disponibilizados para 1.639 municípios, mas a correlação negativa se preserva na comparação com outros meses com maior cobertura dos dados de distanciamento (junho, setembro e dezembro de 2020, com cobertura de 4.666, 4.246 e 2.020 municípios, respectivamente).

Ainda que o presente trabalho tenha caráter descritivo, os resultados indicam a existência de uma relação positiva entre apoio eleitoral ao presidente e a aceleração da mortalidade por Covid-19 em 2021 no Brasil. A mortalidade tem acelerado exatamente nos estados e municípios que mais votaram em Bolsonaro em 2018 e onde o distanciamento social tem sido menor —portanto, em lugares mais alinhados e suscetíveis à retórica do presidente. Neste sentido, apoio político e eleitoral a Bolsonaro têm correlação direta com mortalidade: mais votos, menos vidas.

Beatriz Rache
Mestre em economia e pesquisadora do Ieps (Instituto de Estudos para Políticas de Saúde)

Miguel Lago
Mestre em ciência política e diretor executivo do Ieps

Fernando Falbel
​Estudante na Eaesp-FGV (Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas) e estagiário do Ieps

Rudi Rocha
Doutor em economia, é professor da Eaesp-FGV e diretor de pesquisas do Ieps

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