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Flávia Martins de Carvalho

Sobre letras e livros

Entre a comida na mesa e as obras na estante, temos fome de tudo!

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Flávia Martins de Carvalho

Juíza de Direito no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP), doutoranda em filosofia do direito USP) e diretora de Promoção da Igualdade Racial da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB)

Sempre fui apaixonada por livros. Na infância, tinha um único livro, presente da minha madrinha: "O Cãozinho Jolie", lido e relido tantas vezes que até hoje posso contar a história como se tivesse Jolie em minhas mãos. De família humilde, de fato, a compra de livros não era propriamente a prioridade do orçamento, embora meus pais tivessem plena consciência da importância que os livros tinham no meu processo de formação. Mas, entre ler e comer, não havia alternativa.

Mais tarde, aos 11 anos, cursando a antiga sexta série em uma escola particular, a diretora prometeu que o melhor aluno daquele ano ganharia um livro: "O Pequeno Príncipe". Eu, que costumava obter bons resultados, resolvi empenhar-me ainda mais para conseguir o prêmio, com o qual sonhei por meses. Ao final do ano, a diretora teve problemas de saúde, ficou afastada e ninguém levou o livro. Quanta frustração!

No ano seguinte, fui para a escola pública, pois as coisas estavam tão difíceis que, no último ano da antiga escola, cheguei a fazer trabalho escolar em “papel de pipa”, o mais barato da papelaria, por absoluta impossibilidade financeira para comprar uma folha de cartolina ou papel pardo, os mais usados nesse tipo de atividade. Aliás, parda é também a cor registrada na minha certidão de nascimento, o que certamente não é uma coincidência.

Certo é que a escassez de recursos financeiros sempre dificultou meu acesso aos livros, mas não impediu que eu os quisesse ler. Li, li muito, li em todas as oportunidades que tive. Talvez essa seja a palavra-chave: oportunidade, que não é dada a todos da mesma forma em um país tão desigual quanto o nosso.

Hoje, como juíza de direito, posso adquirir muitos livros, e é o que faço com certa regularidade —tanta que me analiso periodicamente para entender se não há ali uma certa compulsão decorrente dos fantasmas do passado. Quem não os têm?!

Entretanto, a possibilidade financeira, conquistada à custa de muito esforço, não tira o meu pé da realidade vivida por boa parte da população do país —uma realidade de privação e de restrições de acesso à leitura.

Em um país onde cerca de 19 milhões de pessoas passam fome, vale lembrar a letra da música eternizada pelos Titãs: “A gente não quer só comida. A gente quer comida, diversão e arte”.

Não poder ler não significa, por óbvio, não querer ler. Mas, entre a comida na mesa e o livro na estante, temos fome de tudo!

TENDÊNCIAS / DEBATES
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