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Luiz Guilherme Piva

Holanda, pandemia e ratos

Legado vai além da inesquecível seleção de 1974

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Luiz Guilherme Piva

Economista, mestre (UFMG) e doutor (USP) em ciência política e autor de “Ladrilhadores e Semeadores” (Editora 34) e “A Miséria da Economia e da Política” (Manole)

Há certa inclinação da Holanda ao esquecimento. É conhecida a afirmação de que, mesmo já tendo estado em Amsterdã, o turista não se lembra muito bem. Também um de seus principais filósofos, Erasmo de Roterdã, ventríloquo da loucura, afirma que não gosta de leitores de boa memória nem bebe com quem se lembra de tudo.

Mas há muito a usufruir do legado holandês. Há quem escolha como contribuição mais valiosa a filosofia de Spinoza (para quem —desculpem a simplificação— tudo o que existe são formas de Deus). Eu prefiro a seleção de futebol de 1974 (que certamente confirma Spinoza). Mas há outras lições importantes para a economia e a política.

Uma delas é a bolha das tulipas. Ela ocorreu na virada do século 16 para o 17 e se caracterizou pela valorização absurda do preço das flores, gerando um imenso mercado de derivativos em que se negociavam contratos futuros dos bulbos. Até que, em 1636, um comprador não honrou o compromisso, os preços viraram pó e a bolha estourou.

Outra é a chamada “doença holandesa”. Trata-se da valorização extrema de determinado bem de exportação de um país, que atrai muitas divisas, valoriza a moeda nacional e desmonta o restante da estrutura produtiva interna. O nome advém da grande valorização do gás natural descoberto na Holanda nos anos 1960: quase toda a indústria do país foi gravemente ferida pela valorização do florim.

Mais recentemente, outro processo que ganhou o nome de “holandês” é um formato de leilão, sobretudo em ofertas de títulos no mercado. O assunto faz parte dos estudos dos premiados com o Nobel de Economia em 2020 (Paul Milgrom e Robert Wilson). Nele inverte-se a lógica de os lances partirem de um preço mínimo: estabelece-se um preço máximo a pagar e as ofertas decaem até a menor oferta aceita pelo vendedor.

​E os ratos?

Em tempos de pandemia e vacinação, é bom recordar o que se passou no início do século 20 no Rio de janeiro. Para combater a peste bubônica, a prefeitura anunciou que compraria os ratos que as pessoas capturassem. Isso fez com que a população passasse a criar ratos para vender, e o contingente de ratos —e os seus preços— subiram. A prefeitura interrompeu a compra e furou a bolha. (Nesse mesmo período, a propósito, a campanha da vacina obrigatória contra a varíola —a Revolta da Vacina— gerou forte reação de segmentos da população e até tentativas de golpe por parte de grupos florianistas —seguidores de Floriano Peixoto, militar que fora presidente da República de 1891 a 1894.)

Bonde tombado na praça da República, no Rio de Janeiro, durante a Revolta da Vacina - Divulgação

A ideia da prefeitura talvez tenha tomado como exemplo a cidade de Hamelin (que não é na Holanda, mas é perto) no século 13. Contratou-se um indivíduo que receberia pelo número de ratos que extinguisse. Ele aceitou por um preço alto e, com sua flauta, atraiu os ratos da cidade para a morte no rio local. Só que não o pagaram. Ele, então, para se vingar, encantou e fez sumir todas as crianças da cidade. Uma forma perversa de se estourar uma bolha.

Ainda bem que, no caso do Rio, não se tratou de uma demanda internacional pelos nossos ratos, porque, além da bolha, teríamos sofrido também com a “doença holandesa” dos roedores, com os preços chegando às alturas no mercado mundial.

A menos que os compradores estrangeiros adotassem o leilão holandês.

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